A real dimensão do pequeno, o pequeno alcance do muito grande

Cinema

17.05.15

Duas “cenas de um casamento”, digamos assim para resumir na lembrança do clássico de Ingmar Bergman as histórias dos filmes de Gus van Sant, The Sea of Trees, e de Philippe Garrel, L’ombre des femmes. O primeiro é uma narração mais perto da tradição formada nas ideias de alta definição e de alto espetáculo. O segundo, mais perto de um gesto essencialmente cinematográfico, embora de aparência simples, despretensiosa, de um relato cotidiano. 

Cena de The sea of trees, de Gus Van Sant

A simplicidade como um valor cinematográfico: festivais de cinema, e Cannes em especial por ser o maior de todos, tendem a montar parte de seus programas com filmes que sublinham a atmosfera de grandiosidade da festa, quer pelo investimento na produção, quer pela presença de personalidades no elenco – duas garantias de ampla cobertura da grande mídia. Grande: com frequência, no mundo dos festivais, o sussurrado, o cotidiano, o pequeno, parece menor ainda.

Bem entendido, destacar a simplicidade aparente da narração e da ação imediatamente visível em Minha irmã mais nova (Hamimichi Diary, de Kore-eda Hirokazu) e em Doce de feijão (An, de Naomi Kawase) não quer dizer que o real mérito desses filmes se resuma à invenção de um espaço ideal, feito só de harmonia, sem dramas e sofrimentos. Ao contrário, um problema familiar de difícil solução marca o convívio das três irmãs mais velhas com a mais nova, que elas conhecem no enterro do pai e adotam para surpresa da mãe, incapaz de compreender porque as filhas trazem para casa uma lembrança viva da traição do pai. Problemas sociais marcam o dia a dia de Sentaro, o vendedor de doryakis, e Tokue, a cozinheira de pouco mais de setenta anos. Um cliente nota os dedos deformados na mão da cozinheira e logo se descobre que ela vivia numa colônia para leprosos.

A delicadeza da narrativa desses filmes não esconde nem suaviza o conflito familiar vivido pelas irmãs abandonadas pelo pai (e pouco depois abandonadas também pela mãe, que decide morar sozinha e deixar a casa da família para as filhas) nem encobre a marginalização imposta aos portadores de hanseníase mesmo depois de descoberta a cura para a doença. A narrativa não arrasta o espectador para dentro da situação narrada; ele não é chamado a sofrer o que os personagens sofrem. Vive e sofre numa outra dimensão, paralela, solidária, mas outra. Não abandona a realidade em que vive para projetar-se na realidade-outra dos personagens. Vive uma espécie de montagem paralela. Nenhuma projeção sentimental na cena, nenhum distanciamento dela.

Doce de feijão foi feito para falar do preconceito ainda existente contra os portadores de hanseníase – essa é a questão central do filme, reafirmaram Kawase e seu co-roteirista, Danriu Sukegawa, na entrevista coletiva após a projeção em Cannes. Para evitar um preconceito às avessas, para evitar que as pessoas fossem levadas a ver os doentes como vítimas, como incapazes, decidiram mostrá-los primeiro como pessoas normais, criativas como a velha cozinheira. Desse modo, antes do leprosário, doryakis para o espectador sentir não a doença, mas o preconceito em torno dela.

Gesto semelhante encontra-se em Minha irmã mais nova. Antes da questão familiar, a viagem para o enterro do pai que saíra de casa quinze anos atrás para se casar com a amante que engravidara e o conhecimento da irmã mais nova. O pai se casara uma terceira vez, descobrem no enterro, a irmã mais nova vivia com a madrasta, e as mais velhas decidem levá-la para casa. Ainda antes de chegar ao centro do problema familiar, pequenas histórias do pai contadas pela irmã mais nova. Ele atirava o anzol de um jeito especial quando pescava; ele gostava de caminhar até o ponto mais alto da colina para ver a paisagem. Quando o drama da mãe vem a primeiro plano, o tom da narrativa não se altera, o que permite melhor apreciar a ainda presente dor de separação na mãe, o desconforto da irmã mais nova no meio da família que se desfez porque ela nasceu, e o mal-estar das irmãs mais velhas, em busca de uma brecha para situar o sofrimento com o abandono paterno entre a dor da mãe e a da irmã mais nova. O espectador se dá conta de todo este desacerto familiar mas não vive as paixões em cena. Ali, mas numa outra dimensão, vive uma (feliz) paixão cinematográfica.

Algo assim se passa com o filme de Garrel. Algo bem diferente ocorre com o de van Sant.

À sombra das mulheres (L’ombre des femmes, de Philippe Garrel) trabalha na sobriedade e no meio tom para contar (em preto e branco, em cerca de 70 minutos) o rompimento e o reencontro de um casal, ele um diretor de cinema, realizador de documentários, ela sua colaboradora direta. Enquanto prepara um filme sobre um ex-combatente da Resistência, tem um relacionamento extra-conjugal – sem saber porque ou, como explica o narrador, porque ter amantes faz parte da natureza dos homens, e ele nascera homem. Pouco depois a mulher também encontra um amante – porque não sentia mais interesse no olhar do marido, explica quando ele se descobre traído. Para o marido, a traição da mulher era indesculpável: ser infiel, ele pensa, não faz parte da natureza das mulheres. 

Cena de L’ombre des femmes, de Philippe Garrel

Essa ligeira referência à ironia dos diálogos e do texto de narração, ao preto e branco da imagem e à relativamente curta duração do filme dá uma ideia bem precisa desse filme feito entre (referência para quem tem alguma familiaridade com o cinema francês) Éric Rohmer e Robert Bresson: a história é narrada em ordem cronológica por uma câmera quase todo o tempo na altura dos olhos de uma pessoa de pé, e um jogo de atores feito de poucos gestos para sublinhar a expressividade dos diálogos. 

Um mar de árvores (possível tradução direta do título do filme de Gus van Sant, The sea of trees) ou A floresta dos sonhos (título adotado para o lançamento comercial na Europa) parte igualmente de um conflito de casal, a mulher insatisfeita porque deve sustentar a casa enquanto o marido se dedica a pesquisas científicas no campo da física. De repente a mulher adoece e morre, e o marido, movido pela culpa, decide suicidar-se. Toma um avião e vai para Tóquio, para morrer num parque japonês, depois de uma pesquisa no Google por um lugar ideal para suicidar-se. A história começa a ser contada nesse ponto, a viagem para Tóquio. Só adiante, em seguidas voltas ao passado na memória do personagem, começa a se revelar as duras discussões do casal, a doença e a morte da mulher. Em algum lugar dessa complicada viagem entre uma cidade dos Estados Unidos e uma floresta no Japão empreendida por um homem em busca de seus fantasmas, o que o filme aparentemente pretendia discutir se perde, cede lugar à preocupação de compor um espetáculo grande. Longos passeios aéreos sobre a floresta que se move ao vento como a superfície do oceano, um sem número de personificações dos fantasmas do protagonista perdido entre as árvores onde pretendia morrer. Grande: bem entendido, a atenção maior dada à produção de um espetáculo de encher os olhos não é em si uma coisa boa ou ruim; mas aqui a pretendida grandiosidade é francamente prejudicial ao filme. Um mar de árvores cria uma espécie de tsunami e se afoga em sua própria onda.

Em águas bem mais tranquilas navegam na competição de Cannes os novos filmes do italiano Nanni Moretti, Mia madre, e do americano de Todd Haynes, Carol, os dois, cada um a seu modo, falando de cinema, Moretti na história que conta, a de uma filmagem, Haynes no modo de contar a história, uma recomposição do estilo de Hollywood dos anos 50.  

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