As palavras de Clarice – quatro perguntas para Roberto Corrêa dos Santos

Quatro perguntas

03.12.13

Criado há dois anos pelo Instituto Moreira Salles, o evento Hora de Clarice, que homenageia Clarice Lispector no mesmo mês em que ela nasceu e morreu, terá em dezembro de 2013 uma apresentação baseada no livro As palavras (Rocco), organizado por Roberto Corrêa dos Santos.

O professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), escritor, artista visual, autor de ensaios sobre estética, literatura e artes, selecionou frases dos livros de Clarice para compor As palavras, que está sendo lançado neste final de 2013.

No palco do auditório do IMS, no Rio de Janeiro, as atrizes Malu Mader e Cláudia Abreu lerão no dia 10, a partir das 19h, no evento “Além do vento há uma outra coisa que sopra”, parte das frases compiladas por Corrêa dos Santos, um estudioso da obra de Clarice que já produziu dois livros sobre a autora, disponíveis no site do IMS dedicado a ela.

Nesta entrevista por e-mail ele defende que, ao se retirar as frases do contexto que foram publicadas, o processo de escrita de Clarice fica mais visível, perdendo-se muito menos do que se ganha. E diz que é bom que os dizeres da autora (os verdadeiros) se espalhem pelas redes sociais.

1) Ao retirar frases de Clarice Lispector do contexto dos livros em que elas estão, o que ganham e o que podem perder?

O ato de retirada das frases de Clarice, ou de outro alto artista, de seu local de “origem”, muito pouco difere, se é que difere, do comportamento básico de qualquer atitude de leitura (de escuta), em virtude de os modos de funcionamento do aparelho mental (mnêmico-afetivo) exigirem a seleção em face de um todo; tal exigência constitui  uma das maneiras de o próprio aparelho preservar-se e preservar-nos vitalmente, e assim podermos prosseguir; logo, o contexto “narrativo” (seja qual for) sempre será atingido, queira-se ou não, pelo processo aparentemente violento de espotejar as totalidades; no caso específico desse trabalho com os livros de Clarice (talvez o mesmo não ocorra para outros e muitos escritores), creio que mais se ganha do que se perde; ganha-se em virtude de trazer à vista, e bem nitidamente, o raríssimo processo de escritura dela, Clarice; processo a compor-se justamente da capacidade intuitiva e conceitual de produzir não por enorme vontade de contar um caso, mas de valer-se do caso/fato (Clarice assim denomina: fato) para que, naquele espaço de um ir-quase-acontecendo, algo esteja a brotar (justo a frase!); interessa-lhe cravar na página a frase, que, em Clarice, outra coisa não é do que pensamento ardente e grafado. O retirar dali a frase destaca um dos mais vigorosos mecanismos construtivos desse modo de escritura, que só reconheço, no Brasil, em Clarice. O que se perde, talvez? Perde-se, talvez, aquele sentimento de estar o leitor sendo lançado, no ato da leitura de seus textos, como em uma roda gigante (a imagem é de Clarice), lançado aos alegres susto e exaustão do sem cessar de pensamentos, palavras, sensações; ?isoladas’,  certas admiráveis e surpreendentes frases – como se dá em As palavras – ganha-se o bônus de um certo bem-estar (não a roda gigante, mas quem sabe, o barco e o lago: perigos ali também); com isso continua o poder, no ler, ampliar-se; o coração do leitor baterá, em estando n’ As palavras, com diversa batida. E baterá muito, pois perplexo em face do plural dos saberes de vida, amor, morte, ética, gesto, graça; diante ainda de fartos e reveladores desenhos-aparições de coisas e seres.

2) Em tempos de redes sociais, quando citações, muitas vezes apócrifas, estão disseminadas, há risco de banalização de Clarice ao se recortarem frases de seus livros?

Clarice não se assusta com riscos; defende-os como necessários ao distender-se; caso se disseminem na rede frases efetivamente escritas e pensadas por ela, bom: bom para todos; cresceremos, e alguém será conduzido ao livro, aos livros, aos altos livros; a força deve espalhar-se, expandir-se; a força jamais se torna banal; ao contrário, retira o banal de sua banalidade, germina o banal, eis o fazer contemporâneo de Clarice crescendo com a resistência espalhante do capim (imagem de Clarice), e sobre esse terreno (imagem de Clarice) já nem tanto mais virtual e com real capacidade formadora, a rede: terreno e capim. Eis a premonição de Clarice, em 1974, sobre as redes (são tantas) que divulguem, sem  a doçura do cuidado ético: “Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo o meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo”.

3) Os capítulos de “As palavras” não seguem a ordem cronológica em que os livros de Clarice foram publicados. Qual foi o seu critério na organização dos capítulos?

Em primeiro lugar, devo dizer que, como artista visual, me propus um pacto (obras contemporâneas nascem de pactos); o primeiro (a) valer-me da intuição, da intuição como método; tal exige ampla disponibilidade de espírito, um deixar-se ir com. Quis assim proceder para (b) estar na impossível mas desejada pertinência das obras, ficcionando, um pouco, o modo como penso terem agido aqueles escritos quando em seu estado de ainda se constituindo obra, ou seja, visava a (c) aproximar-me do irrecuperável  ato do processo de. Escolhidos os livros de Clarice, interessou-me buscar um ritmo “justo” para As palavras; vi, naquela hora que, pensei, o quanto bom seria para a construção plástica e musical ter por início Um sopro de vida (livro de frases e frases e frases soltíssimas de qualquer suporte diretamente encontrável, e organizado não por Clarice e sim por sua amiga Olga Borelli) e ter por finalização A descoberta do mundo (livro de “crônicas” – escolhidas por seu filho, Paulo Gurgel Valente – em verdade, livro de sabedorias curatoriais bem próximas ao trabalho que desenvolvo e que nomeio de Clínica de Artista. Tendo a abertura e o fecho, cuidei de montar, como se em um livro-exposição (livro como espaço artístico expositivo), uma “ordem” em que as vibrações e os acordes de pensamento/sensação pudessem mais bem mostrar as potentes alternâncias da radiante arte de Clarice; contudo, se quisermos, dá-se, bem lá, em As palavras, um distribuir de livros conforme designações tradicionais e quase sempre impróprias – em se tratando da obra em questão – de gêneros literários; basta conferir.

4) No evento Hora de Clarice, as frases serão lidas no palco. Você acha que elas se prestam bem a ser ditas em voz alta, para o público? O impacto pode ser equivalente ao da leitura íntima, silenciosa?

Tenho ouvido muitas leituras (e visto representações com) de frases e textos mais longos de Clarice em voz alta: sempre me decepciono, sempre não gosto, sempre  não reconheço o vibrar-Clarice, o vibrar a intensidade sensível; suponho que, na leitura, atitude em que essas duas partes do corpo – o olho e o cérebro – operam de imediato (todo o corpo, claro, ao ler: age), o impacto é mais intenso; o impacto que se forma quando se põem em ação o ouvido e o cérebro (e todo o corpo) em estado coletivo e social, ambos sob o constrangimento do outro e das normas sociais e simbólicas de lugar, algo de bem precioso se perde, escapa; escapa, sobretudo, o silêncio da letra, o tremor da letra; falta-nos, ainda nas artes de cena nacional, é como vejo, maior domínio de saberes imprescindíveis a essa espécie de canto, o ler-dizer-em-voz-alta; tais como (a) maior domínio dos recursos do aparelho fonador e de seu poder plástico-performativo; (b) maior domínio das possibilidades sêmicas de um texto, incluindo aí seus restos, suas respirações, seus tempos mudos; (c) maior domínio das regras funcionais das diferentes espécies de  silêncio que impõem articular de um só golpe palavras e afetos, “obrigando” que corpos (o corpo de quem  pronuncia e o corpo de quem se encontra na escuta, campo que não se confunde com o do ouvir) se unam. E se atritem.