Fernanda merece desculpas

Correspondência

18.03.11

André,

Rapaz, que desespero deve ter sido esse lance do aquário. Ainda bem que a tragédia foi controlada e Napoleão e Jacinto passam bem. A gente se apega aos bichinhos.

Acho que nunca fiz planos do que levar comigo em caso de incêndio. Talvez anos atrás, mas hoje em dia já tenho um certo desapego, desenvolvido, creio, nas últimas três mudanças de endereço. Quando saí de São Paulo, vendi barato ou dei quase tudo que possuía. Só levei comigo o que cabia no carro. A exceção foram livros, que encaixotei e deixei no sótão da filial da empresa do meu pai em Hortolândia. Não sosseguei enquanto não os trouxe de volta a Porto Alegre em segurança. Ainda estão nas caixas, esperando a estante que mandarei fazer um dia.

Um pouco estranho escrever essa cartinha sabendo que te verei em carne, osso e outros tecidos ainda essa noite. Não esquece de trazer o Mario Galaxy 2 e o nosso save game. Tá sendo demais esse esquema de só jogarmos juntos, quando um visita o outro. Propus isso meio de brincadeira aquela vez, mas acho que ficou sério, hein. Tu não tá jogando às escondidas, né? Não machuque meu coraçãozinho. Sei que a programação aqui será corrida (vamos matar a churrascaria ainda hoje, a turma está avisada), mas acho que conseguimos pegar mais umas quinze ou vinte estrelas até domingo.

Isso é uma coisa que existe também em relação aos livros, mas que gosto especialmente nos videogames: como a história de como foram jogados faz parte da experiência. Lembro das noites geladas em Garopaba em que joguei Prince of Persia de maneira compulsiva, tremendo de frio, mofando com a umidade da temporada de chuvas e temendo pelo efeito da maresia nos circuitos delicados do meu Playstation3, incubando as ideias que me motivariam, meses depois, a escrever o artigo sobre o jogo que publiquei na Serrote. Ou da maneira como joguei Valkyria Chronicles durante seis ou sete meses no fim do ano passado e no início desse ano, antecipando a dificuldade extrema de cada nova missão e adiando a fruição de cada nova etapa da história. Lembro de como eu e meu irmão jogávamos partidas alternadas de Monkey Island 2 no PC, quase vinte anos atrás, avançando paralelamente nos quebra-cabeças do jogo, às vezes compartilhando as soluções, às vezes não. Não era uma competição pra ver quem acabava o jogo mais rápido, e sim uma fruição simultânea e parcialmente colaborativa, uma forma de jogarmos juntos sem que um precisasse ficar à parte, apenas olhando o outro jogar. Era um pacto silencioso que nos permitia progredir ao mesmo tempo. E o importante era isso: avançar ao mesmo tempo.

Ou de como fui escravizado por certos jogos. Quando comecei a jogar Beyond Good and Evil, por exemplo, não consegui parar antes de terminar. Isso deve ter sido em 2004. Certa noite, depois de algumas horas de jogo, saí para pegar uma Coca Light na cozinha e a Fernanda Lima estava na sala. Era amiga da minha companheirinha na época (o diminutivo não pretende diminuir, a gente se chamava assim durante um período, eu era naturalmente o companheirinho, enfim, essas coisas não se explicam). Dei um Oi, sentei para praticar o chamado convívio social lhano e urbano, mas em minutos pedi licença e me tranquei no escritório de novo. Beyond Good and Evil não podia esperar. Talvez eu deva desculpas à Fernanda, foi meio falta de educação.

Ou Oblivion. Esse foi meio traumático. Já morava em São Paulo, lá no Sumaré, e tava soterrado de trabalho. Fazia meses, talvez mais de ano, que não jogava games, mas por algum motivo resolvi instalar Oblivion no meu PC. Quando me dei conta, estava com todos os prazos estourados, aleijado pela tendinite, jogando Oblivion umas oito horas por dia, incapaz de parar. Meu PC era lerdo e os cenários do jogo levavam hoooras pra carregar, mas eu não me importava. Eu precisava conversar com todos os personagens, cavalgar por cada centímetro do território e explorar todas as cavernas. Chegou um dia que acordei no meio da noite, liguei o computador e simplesmente deletei o diretório do jogo no disco rígido. Nem me dei ao trabalho de rodar o Uninstall. Simplesmente apaguei o diretório todo com SHIFT + DEL. Não havia outra maneira.

Mas são exceções. A maioria das minhas relações com os jogos são saudáveis e memoráveis. Tche, lembra da primeira vez que tu me visitou em Porto Alegre, e eu estava jogando Shatter? E por algum motivo decidimos tacitamente que antes de conversar, sair para comer ou fazer qualquer outra coisa, iríamos jogar Shatter até o final, passando o controle ao outro a cada morte ou conclusão de fase?

De modo que: não esquece o Mario Galaxy 2. E o save game.

Estou preparando tudo pra tua chegada aqui. Confere a lista e, se faltar alguma coisa importante, me envia um torpedo:

1. Garrafa de Glenlivet. (Tenho uma lacrada, da outra resta apenas ¼ e pretendo consumi-la ainda no salão de desembarque do aeroporto);

2. Excalibur.

3. Uma caixa de picolé Tablito.

4. Uma caixa de picolé Brigadeiro.

5. Nome na lista no Cabaret.

6. Alerta enviado a nossa amiga Bruna.

7. Mesa de churrascaria reservada para hoje.

8. Quarto de ovelha no freezer para outro churrasco, domingo, no HFHN.

Quanto ao voo, fica tranquilo. O tempo está aberto, céu azul e cristalino, sem a menor possibilidade de chuva, vento ou alterações de temperatura e pressão que propiciem turbulências. Há poucos quero-queros na pista do Aeroporto Salty Son também.

Por fim, obrigado pelo parágrafo do Joyce. A tradução que tu mandou já me pegou de jeito, mas catei o trecho inteiro depois e é fantástico. Adoro enumerações, e aquilo ali é, de fato, especial.

Boa viagem,

D. Galera

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