No fundo de todas as grandes constatações, mesmo das nascidas de tragédias insuperáveis, abriga-se sempre o melhor de todos os valores europeus, o anseio por liberdade que irriga nossa vida com alguma coisa a mais, uma riqueza, conscientizando-nos da realidade e da nossa existência e da responsabilidade que temos por ela.
Imre Kertész, Heureca
Em 2002, no discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura (incluído em A língua exilada, traduzido do húngaro por Paulo Schiller), Imre Kertész confessou ter dificuldade em enxergar a conexão entre o prêmio, a escrita e a própria vida. Tanta atenção — que certamente lhe traria novos leitores — era uma novidade. Desde o primeiro livro, Kertész foi um autor associado ao Holocausto. Ouvia com frequência que o tema “não era oportuno nem atraente”. Não deu importância. Escrevia, disse, para si mesmo. Com isso, tentou construir e manter a própria individualidade — o que parecia vital nas circunstâncias que regeram a maior parte de uma vida transcorrida sob diferentes regimes totalitários.
Nascido em Budapeste, aos quinze anos Kertész foi enviado a alguns dos campos de concentração nazistas, incluindo Auschwitz. Retornou à Hungria em 1945, saído de Buchenwald. Podendo escolher outro país para morar, preferiu voltar à terra natal. Em outro ensaio incluído em A língua exilada, afirma que voltou “guiado pelo instinto do cachorro errante”.
Ontem, 31 de março, Imre Kertész morreu aos 86 anos, vítima do mal de Parkinson. Deixou um testemunho valioso em forma de ficção e ensaios. Em um destes últimos, conta que, quando venceu o Nobel, recebeu do diretor do Memorial de Buchenwald sua ficha do campo, que anunciava a “morte” do prisioneiro número 64.921, Imre Kertész. Ao narrar o episódio, lembrou ter mentido a idade — para não ser classificado como criança e poder se apresentar como operário, declarou ter nascido em 1927, dois anos antes.
Certa noite, aos nove anos, voltando para casa com o pai, notaram que um cinema local exibia Jud Süss, filme de propaganda nazista. O pai lhe contou que os espectadores que saíam do teatro procuravam por judeus para agredir, em uma espécie de pogrom. Kertész compreendeu então que, como judeu, era indesejado, mas permaneceu em Budapeste. Sempre disse que foi por esse motivo que seus livros saíram do jeito que saíram. Se em 1956, aos 27 anos, quando estourou a Revolução Húngara, não partiu, foi porque quis escrever. “Se partisse de onde as pessoas falavam minha língua, sabia que nunca mais escreveria”, disse num dos ensaios.
Acabou encontrando aquilo que chamou de “caminhos tortuosos para a liberdade interior”. Mais de uma vez expressou a “necessidade de sair da multidão narcotizante, da História, que nos suprime a individualidade e o destino”. Sempre afirmou que era fácil ser escritor na Hungria: um escritor, afirmou, precisa apenas de papel e caneta. Kertész não pensava em leitores. De acordo com ele, “uma linha intransponível [o] separava da literatura e dos ideais, do espírito associado ao conceito de literatura”. A linha, claro, era Auschwitz. Por isso o Nobel lhe pareceu tão estranho.
Segundo Kertész, descrever o totalitarismo dentro de outro regime totalitário fez com que sua escrita assumisse uma linguagem muito particular. Declara que “no Ocidente, numa sociedade livre, talvez não tivesse sido capaz de escrever o romance hoje conhecido como Sem destino”, considerado o mais importante de sua carreira. Ao protagonista, György Köves, atribuiu muitas das próprias experiências em Auschwitz. Com Fiasco, seguido de Kaddish para uma criança não nascida, o livro forma uma trilogia.
Mas quero falar de Liquidação (também em tradução do húngaro de Paulo Schiller), de 2003, que o autor disse ser seu último livro a respeito do Holocausto. Com pouco mais de cem páginas, funciona como uma pequena síntese da obra do autor.
Liquidação é um livro interessante na forma. A fronteira entre o real e o imaginado — e o que adquire alguma veracidade ou materialidade por meio da escrita — é porosa. Qualquer autor que pretenda construir um livro com trocas súbitas de narradores, alusões variadas e metalinguagem tem muito a aprender com Kertész.
No início o protagonista, um editor, lê uma peça na qual ele mesmo é um personagem, e que parece espelhar acontecimentos de sua vida. Foi escrita por B., um amigo de longa data. B. nasceu em 1944 “em Oswieccim, mais exatamente numa das barracas de Birkenau, no campo de concentração conhecido como Auschwitz”. Quando B. se suicida, o editor tem a ideia de publicar o material encontrado em seu apartamento, composto sobretudo de notas soltas.
O problema é que o sujeito está convencido de que há um romance escondido em algum lugar. Somente um romance poderia ajudar a ele e aos demais — que também tiveram “destinos revolvidos por forcados” — a compreenderem o que aconteceu, a compreenderem B., a compreenderem Auschwitz. Mas não há romance. Não na forma esperada.
Quando o editor conheceu B., pediu a este que cedesse uma narrativa para publicação em uma revista literária. Ao ler, diz, “apenas minha náusea se intensificou”. O termo não é aleatório. Em um texto sobre A Náusea, de Jean-Paul Sartre, Albert Camus trata do medo de encarar o absurdo e a ausência de sentido (A Inteligência e o Cadafalso, em tradução de Manuel da Costa Pinto e Cristina Murachco). “De tanto viver remando contra a corrente, um desgosto, uma revolta toma conta de todo o ser, e a revolta do corpo chama-se náusea”, escreve. Não por acaso, Liquidação trata o suicídio como um problema filosófico.
Nem mesmo o protagonista, quando intimado pela polícia para esclarecer a morte do amigo, sabe contar a história de B. “Na sala da repartição, onde eu sentia que se reunia toda a indiferença do mundo, compreendi também que toda a história chegava a um final, [e] que todas as nossas histórias eram histórias inenarráveis.” Quem está interessado no que eu tenho a dizer, caso o que eu tenho a dizer pudesse ser dito?
Não apenas o personagem pensa assim. É a contradição mais óbvia, e mais forte, em toda a obra de Kertész. Apesar de ter recebido um Nobel de Literatura, ele não confia, ou não confia por inteiro, no ato de narrar. Pensando em sua trajetória, parece natural que ele não tenha podido confiar em quase nada, nem (ou sobretudo) na palavra escrita. B., também autor, tampouco acredita na escrita. Contraditório, acredita ser preciso calar as próprias dores. A realidade de B., assim como a de Kertész, é tão atroz e improvável que parece ficção.
Judit, ex-mulher de B., é mais otimista quanto ao ato de narrar. “Mas eu acredito na escrita. Em nada mais, somente na escrita. O homem vive como um verme, mas escreve como se fosse para Deus”, diz. Para ela “o mundo é feito de cacos partidos, um caos escuro, sem nexo, sustentado apenas pela escrita”. Ao longo da obra de Kertész se intui a oscilação, com maior ou menos pungência: a escrita importa; a escrita não importa; a escrita importa; a escrita não importa.
Em Liquidação, um caso amoroso narrado por uma personagem parece ao protagonista “simples como um conto, e impossível como a vida”. Ler Kertész é resolver essa questão principal: afinal, escrever tem algum valor? E a vida? Para nossa surpresa, a resposta é positiva. Para Camus, “o erro de uma certa literatura é acreditar que a vida é trágica porque é miserável”, uma vez que “pode ser emocionante e magnífica, [e] esta é sua tragédia”. Em um certo sentido, a obra de Kertész reflete sua consciência disso. Basta lembrar que Judit, em Liquidação, sente culpa por ser feliz.
Imre Kertész fez o possível para acreditar na escrita. Transmitiu seu legado, contribuindo para que o futuro, como diz a máxima, não repita os erros catastróficos do passado. “Da dúvida primitiva, talvez surja um ‘Escrevo, logo sou’”, observa Camus. Para Kertész, essa frase foi uma realidade. Ou, como diz um dos narradores no caos de Liquidação, foi “a assim chamada realidade”.