A dívida com os clássicos

Correspondência

07.07.11

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Caro Sérgio,

 

Que carta suculenta! Nem sei se vou dar conta dos vários assuntos e estímulos que ela irradia.

Começo a responder pelo fim: infelizmente não vi Incêndios ainda, mas vou dar um jeito de sanar em breve essa falha. Quanto ao novo Woody Allen, achei uma delícia, e até escrevi sobre ele no meu blog, que você está convidadíssimo a visitar e comentar.

Tenho muitos amigos que torcem o nariz para o Woody Allen, acusando-o de pseudointelectualismo ou mesmo de anti-intelectualismo. Penso diferente. A meu ver, ele brinca, por um lado, com o pedantismo acadêmico, e por outro com a superficialidade intelectual de nossa época, mas ao mesmo tempo sabendo que trabalha com um meio de expressão também ligeiro e superficial, que é o cinema narrativo americano.

Em Meia-noite em Paris ele manipula de modo leve e gracioso os clichês sobre os míticos e loucos anos 20 parisienses, tal como retratados no livro do Hemingway, A moveable feast. É um exercício irresistível de fantasia.

Mas, seguindo de trás para frente a leitura da sua carta, vejo que vira e mexe caímos no tema do suicídio. Além de Castilho, você citou o livro do Peter Handke que fala do suicídio da mãe, e comentou sua admiração (que compartilho) por Thomas Mann, um homem cercado de suicidas por todos os lados: duas irmãs e dois filhos, benza deus.

Devo confessar que, apesar de admirar Mann profundamente, tenho entre minhas graves lacunas dois de seus maiores (em todos os sentidos) romances: Doutor Fausto e José e seus irmãos. Este último, em três volumes, eu tentei ler algumas vezes, mas sempre interrompi a leitura por conta de alguma circunstância externa. Retive a magnífica frase de abertura: “É muito fundo o poço do passado”. Não é linda?

Continuando no capítulo das confissões: quando eu era estudante de história na USP, na época da ditadura, e ficava intimidado diante de um grande clássico da literatura, como Guerra e paz ou Em busca do tempo perdido, pensava assim: “Eu leio quando estiver preso”. Eu tinha certeza de que seria preso e até me imaginava em minha cela, lendo grossos volumes e escrevendo longos manuscritos, como os Cadernos do cárcere de Gramsci.

O fato é que essa lúgubre fantasia bolchevique não se concretizou: não fui preso e minhas lacunas seguem abertas. O que me leva a perguntar qual é a sua relação com os “clássicos”, com o chamado cânone literário ocidental. Millôr Fernandes tem uma frase deliciosa e cruel: “Clássico é um livro que todo mundo gostaria de ter lido, mas ninguém quer ler”. Claro que discordo, mas talvez haja nisso uma dose de verdade. (Nunca consegui ler Jerusalém libertada, por exemplo, nem o Paradise lost, do Milton.)

Mas há uma definição mais positiva e fecunda, esta do Italo Calvino: “Clássico é um livro que não terminou de dizer o que tem a dizer”. A questão é que ele (o clássico) não diz a mesma coisa para todo mundo, muito menos ao mesmo tempo.

Enfim, nesse caminho inverso, chego a Kafka e a O livro de Praga. Adorei saber desses aspectos pouco conhecidos de Kafka, ou pouco harmônicos com o clichê que se criou dele. Um Kafka de calção de banho, ou praticando esportes, causa um saudável estranhamento, um abalo interessante na imagem de escritor sisudo e sombrio.

Ouso dizer que certa quebra da sisudez é um dos aspectos que mais me encantam na sua (de Sérgio Sant’anna, não de Kafka) literatura, e isso está presente como nunca n’O livro de Praga. O protagonista não só não se leva demasiado a sério como se sabota o tempo todo, numa autoironia corrosiva que faz vacilar até mesmo sua autoridade e confiabilidade como narrador.

O principal efeito que um livro como esse me causa é de libertação, de leveza, um sentimento de grande potência da literatura e da imaginação. E a forma como o erotismo surge quase como uma fusão entre a arte e a experiência, ou antes como a resolução dessa equação num plano superior, é coisa de um escritor maduro, pleno e sábio, mas que não perdeu a inquietação e a ousadia.

Sugiro que em algum momento de nossa correspondência falemos sobre o erotismo.

Te mando um grande abraço e espero ansioso pela próxima carta.

Zé Geraldo

* Na imagem da home que ilustra este post: detalhe da instalação Argument #1 (1997), do artista canadense Tom Bendtsen

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