Quem conhece os filmes de Sergio Bianchi sabe que a sutileza não é o seu forte. Sabe também, em compensação, que neles não há lugar para a complacência e muito menos para a hipocrisia. Implacável, inflexível, seu dedo costuma tocar direto nas feridas que outros artistas preferem ignorar ou contornar. Não é diferente com seu novo trabalho, Jogo das decapitações.
Desta vez, o protagonista é Leandro (Fernando Alves Pinto), um estudante de pós-graduação que prepara mestrado sobre a esquerda no período da ditadura militar. Sua mãe é uma ex-prisioneira política (Clarisse Abujamra) que dirige uma ONG de direitos humanos empenhada em conseguir indenizações para vítimas do regime. Seu pai (Paulo César Pereio), artista libertário preso por atentado ao pudor na juventude, virou prisioneiro comum décadas depois por ter matado uma mulher. Numa rebelião num presídio, ele pode ser um dos mortos não identificados, mas também pode ser um dos fugitivos.
É entre esses dois polos – a militância convencional de esquerda encarnada pela mãe e a pulsão transgressora do pai – que transita o atormentado rapaz.
Fosso de classe
Esse arcabouço dramático serve para Bianchi expor sua visão ácida de alguns assuntos cruciais: o oportunismo político de militantes encastelados em ONGs ou na política institucional; a barbárie que caracteriza desde sempre nossa formação social; a clivagem de classe que separa a elite intelectual de esquerda dos pobres que ela julga defender; a falta de perspectivas visíveis no horizonte.
Tudo conflui para a conclusão, expressa no título de um filme do diretor, de que o Brasil é “cronicamente inviável”. É pela boca do cético e sarcástico Rafael (Silvio Guindane), colega de faculdade de Leandro, que Bianchi parece proferir suas sentenças terríveis e definitivas.
A construção narrativa é ostensivamente heterogênea, “suja”, composta de diferentes texturas: a exposição da ação no presente se entrelaça a documentários de época, aos pesadelos do protagonista e a trechos de Jogo das decapitações, filme realizado nos anos 1970 pelo pai porra-louca e resgatado por Leandro.
Jogo intertextual
As imagens desse filme dentro do filme, na verdade, foram extraídas do primeiro longa-metragem de Sergio Bianchi, Maldita coincidência, de 1979. Alguns atores do filme antigo, como Sergio Mamberti e Maria Alice Vergueiro, reaparecem no novo, em papéis bem diversos, produzindo um curioso curto-circuito.
O que Jogo das decapitações tem de mais interessante talvez seja esse arguto jogo intertextual, que matiza e problematiza o tom sentencioso do discurso. Os pesadelos do protagonista, embora marcados pela ênfase e pela redundância, têm alguns momentos inspirados, como a exposição das cabeças cortadas de um punhado de presos, numa espécie de altar que lembra em tudo a célebre foto das cabeças de Lampião e seu bando. Troféus macabros ligados pelo fio invisível da nossa crônica barbárie.
Outras cenas memoráveis – e igualmente terríveis – são a do linchamento de um homem que atropelou uma pessoa e a da “oficina de teatro” ministrada numa escola rural por um ex-guerrilheiro (Elias Andreato). Nesta última, salvo engano o único momento em que o filme se afasta do protagonista, o ex-guerrilheiro entoa com vigor uma velha canção política, diante do olhar jocoso de jovens indiferentes. Mundos em descompasso, ideias fora do lugar, línguas distintas, cabeças cortadas.