Um dos refrãos mais batidos desde o anúncio do resultado do primeiro turno das eleições tem sido o do fracasso das manifestações de rua diante da vitória de uma bancada legislativa majoritariamente conservadora, considerada sinal indelével de que a indignação dos protestos não se expressou nas urnas, onde teriam prevalecido a escolha de representantes em nada afinados com as reivindicações de junho do ano passado. É exatamente contra esta perspectiva que pretendo argumentar. Só quem parte da premissa de que a insatisfação manifesta nas ruas deveria ter sido necessariamente canalizada para eleitores de esquerda pode estar decepcionado.
Para argumentar ao contrário, é preciso abandonar primeiro essa premissa. Primeiro, quero lembrar alguns dos slogans e pautas das manifestações: “Sem partido” ou “Vocês não me representam”, numa formulação em que “vocês” se dirige a todos aqueles que foram eleitos a fim de defender o interesse de algum tipo de elite – econômica, política, corporativa, religiosa –, em prol do interesse de todos. “Não é só pelos 20 centavos”, “Não vai ter Copa” ou “Queremos saúde padrão Fifa” também podem ser úteis na recordação de que a voz das ruas gritava indignação não necessariamente contra “o” governo, mas contra qualquer tipo de governo que pretenda estabelecer, de cima para baixo, a partir de critérios técnicos sob os quais se escondem interesses escusos, o que é o bem comum.
A expressão “bem comum” pode ressoar um pouco ingênua em contexto tão complexo, mas se eu tomar como exemplo o mote da mobilidade urbana e a reivindicação por passagens gratuitas, “bem comum” talvez possa deixar de ser um termo vago. O sistema público de transportes é um paradoxo da vida social brasileira. É público, porém é cobrado por ser oferecido por empresas privadas. Assim, ao contrário dos hospitais públicos ou das escolas públicas, o transporte público é manobrado por empresas privadas em concessões pautadas por interesses que passam longe de atender o bem comum. A pauta dos 20 centavos, nesse sentido, catalisou a soma de todas as insatisfações com decisões que, tomadas nos gabinetes, pretende decidir a vida de quem só pode e precisa andar na rua.
Se é possível concordar que a revolta é contra essa insatisfação, então talvez também seja possível pensar no resultado das urnas como parte do mesmo fenômeno que nos levou para as ruas: a descrença nas formas políticas estabelecidas. Em números, é possível detectá-la. Somados, abstenção, brancos e nulos chegam a 29,03% dos votos para a presidência da República, num vistoso terceiro lugar, bem à frente da candidatura de Marina Silva, por exemplo (21,32%). No Rio de Janeiro, no pleito para governador, esse percentual é tão expressivo – 37,67% na soma de abstenção, brancos e nulos – que alcança o segundo lugar, com discreta diferença em relação aos 40,57% de Luiz Fernando Pezão e acentuada distância dos 20,26% de Marcelo Crivella. Em números absolutos, 34,8 milhões de eleitores não votaram para presidência e 4,14 milhões de eleitores não votaram para governador do Estado do Rio de Janeiro.
Consulta aos resultados divulgados pelo TSE vão indicar percentuais próximos em outras regiões e seria ocioso repeti-los. Os dados estão aqui apenas para me ajudar a encontrar onde as urnas vocalizaram aquilo que as ruas gritam desde o ano passado. O descrédito com a política tradicional e com as formas democráticas que, a rigor, mantiveram uma estrutura de total afastamento entre estado e povo pode encontrar diferentes formas de expressão. Além de uma negação expressiva, é preciso considerar também – ou principalmente – que a votação em candidatos da extrema-direita é parte do mesmo fenômeno (tome-se, por exemplo, a expansão da extrema-direita em países europeus como análogo).
A razão é simples: se a crítica é à distância entre Estado e anseio popular, essa crítica tanto pode se manifestar pelo seu extremo à direita quanto pelo seu extremo à esquerda, dois caminhos diferentes de expressar insatisfação “com tudo isso que está aí”, já que “tudo isso que está aí” não quer dizer necessariamente oposição a este ou aquele governo, mas afirmação de que a forma política da representação está em crise no Brasil e em todas as democracias modernas ocidentais. Crise cuja história gira em torno da impossibilidade de representação de um objeto ao sujeito, do mundo a um eu; crise que se apresenta como a impossibilidade de que uma dada identidade política – parlamentar ou executiva – represente adequadamente uma dada identidade de um sujeito político – cidadã/o ou eleitor/a.
A insistência nesta crise é o que me permite não aderir à premissa de que a insatisfação manifesta nas ruas deveria ter sido necessariamente canalizada para eleitores de esquerda e pensar que o lugar dessa crise é a rua, naquilo que ela tem de mais vulgar, comum e indistinto. Estar na rua, nesse sentido, é reivindicar que, seja lá quem pretenda representar os interesses do povo, não poderá mais fazê-lo como o exercício de um privilégio.