Como se sabe, antes de morrer e deixar pilhas de escritos sob os cuidados do amigo Max Brod, com a instrução clara de que tudo ali deveria ser destruído, o próprio Franz Kafka já havia queimado alguns de seus papéis. Brod não só quebrou a promessa ao manter o material cuidadosamente guardado em caixas como publicou três livros póstumos de Kafka: O processo, O castelo e América. Trocando em miúdos, o leitor deve muito à infidelidade.
Mas até a infidelidade tem limite. O que poucos sabem dessa história é que atualmente corre um processo em Tel Aviv em torno de quem cuidará do espólio do escritor. Embora tenha legado parte dos manuscritos à Bodleian Library, em Oxford, Brod levou consigo na mala para a Palestina alguns dos papéis de Kafka. Depois da morte de Brod, em 1968, quem passou a cuidar da papelada foi sua secretária, Esther Hoffe, com quem, ao que parece, ele teve um affair. Contrariando todas as vontades do autor, ela decidiu vender o manuscrito de O processo e arrecadou a bagatela de 2 milhões de dólares.
Depois da morte de Esther, e ao ver que o negócio era mesmo rentável, as filhas Eva e Ruth decidiram que também mereciam lucrar. Nenhuma surpresa até aí. Só que dessa vez o critério foi ainda mais abstrato – ou, pelo contrário, foi objetivo ao pé da letra. O resultado é que Kafka agora está no tribunal, já que as irmãs esperam vender os manuscritos… a peso. Talvez fosse mais apropriado abrir um restaurante com a placa: “Kafka a Kilo”.
***
O que Judith Butler explica no artigo “Who Owns Kafka?“, publicado no site da London Review of Books, é que o processo em torno da obra do escritor dá margens a inúmeras interpretações nem sempre acuradas. É o caso da Biblioteca Nacional de Israel, que defende os livros de Kafka como um bem público, mais especificamente um bem do povo judeu. Nesse sentido, o acesso aos livros esbarraria antes numa questão religiosa bastante polêmica, uma vez que, nas palavras da autora, “Israel representaria não apenas os judeus, como toda produção cultural assinada pelos judeus”.
Seria então um bem alemão? Hannah Arendt disse que a obra de Kafka “narra a mais pura prosa alemã do século”. Mais uma vez, entraríamos numa situação delicada, uma vez que, apesar de o alemão ser a língua materna do autor, ele nasceu na República Tcheca. De modo que a palavra “pura” soa um tanto fora do lugar – e Judith se arrisca em sugerir substituí-la por “purificada”.
O problema, na verdade, é que para o próprio autor a religião não era uma questão clara. Nem a nacionalidade. Nem quase nada, praticamente. Kafka não teve filhos, e as três tentativas de casamentos falharam. Nem mesmo um apartamento em seu nome ele deixou ao morrer.
Judith, assim, mostra que entre alemão, tcheco e judeu Kafka não parece pertencer a um só território. Talvez a única certeza que possamos extrair do autor, e o mesmo em relação aos seus livros, é que ele e seus personagens estavam sempre à margem, desejando estar em qualquer outra parte.
Um bom exemplo aparece em “A partida”, que compõe as Narrativas do espólio [coletânea elaborada por Modesto Carone] (1914-24). No texto, o personagem está saindo de casa a cavalo, quando um empregado lhe pergunta para onde vai. Ele responde: “Não sei. Longe daqui, longe daqui”. Para Judith, esse fragmento é significativo, porque “longe daqui” não vem a ser lugar nenhum. A partir do momento em que se chega a algum lugar, esse novo lugar se torna “aqui” também, ainda que seja um outro “aqui”.
É possível que, para o autor, esse novo lugar fosse inabitado, e também inabitável, provavelmente uma parábola para a Palestina. E é essa, justamente, a dificuldade que o atual julgamento enfrenta ao tentar delimitar o espaço e as origens do escritor: afinal, em qualquer lugar onde estivesse, e principalmente na própria casa, Kafka era sempre um estrangeiro.
* Alice Sant’Anna é coordenadora editorial da revista serrote