Ganhei no fim do ano a edição bilíngue, em alemão e em inglês, dos primeiros poemas de Thomas Bernhard: On Earth and in Hell (Na Terra e no Inferno, trad. Peter Waugh, ed. Three Rooms Press, NY, 2015). Bernhard tinha 26 anos quando o livro foi lançado na Áustria, em 1957. São poemas de juventude, influenciados por Baudelaire e Rimbaud, por Artaud e Georg Trakl, mas também pelo imaginário bucólico da literatura de gosto duvidoso professada pelo avô materno, figura mítica da infância do autor. Há coisas extraordinárias nesses versos. No prefácio, o tradutor explica que Bernhard era “um agente provocador implacável, um sabotador literário das posições entrincheiradas da sociedade intelectualmente tolhida do pós-guerra”. Bernhard surgiu para desagradar, para dizer o que não se queria ouvir, o inverso do que hoje se aconselha ao jovem escritor que quer ser publicado.
Há alguns anos, participei de um debate na França, com um escritor canadense e um colombiano. A certa altura, o mediador quis saber o que a literatura francesa significava para cada um de nós. Lembrei na mesma hora das imagens de arquivo de uma entrevista que o editor Jerôme Lindon, das edições de Minuit, concedera à televisão francesa, no final dos anos 50, depois de lançar Samuel Beckett e os primeiros autores do Nouveau Roman. O entrevistador perguntava o que pretendia a Minuit, e Lindon respondia, sem hesitar, com um sorriso jovial, orgulhoso e realizado: “Publicar os livros que ninguém quer ler”. Eu disse ao mediador que, para mim, quando comecei a escrever décadas depois, a literatura francesa teve o significado dessa liberdade.
Lindon se tornou um mito da edição. Filho de judeus parisienses que se refugiaram no sul da França durante a ocupação, passou a juventude entre a clandestinidade e a Resistência. Depois da guerra, aos vinte e poucos anos, sem diploma e sem profissão, disse ao pai que queria ser editor. A Minuit era uma pequena editora criada na clandestinidade, durante a ocupação, por um escritor e ilustrador da Resistência, Vercors. O nome (Minuit/Meia-noite) fazia referência à hora em que os livros eram impressos e distribuídos. A situação financeira da editora não podia ser pior quando Lindon a assumiu e a transformou em um modelo de excelência e independência, com uma receita que hoje deixaria qualquer editor de cabelo em pé: publicando os livros que ninguém queria ler, alguns deles obras-primas da literatura universal.
Ninguém queria publicar Samuel Beckett. Inconformada, a mulher do escritor decidiu enviar os manuscritos da trilogia (Molloy, Malone Morre e O Inominável) ao novo editor na praça. Ficou famosa a epifania de Lindon, no metrô, lendo os manuscritos pela primeira vez, às gargalhadas, com as folhas voando pelo vagão. O próprio Beckett, ao saber que a Minuit decidira publicá-lo, disse à mulher que seus livros levariam o jovem editor à falência.
Ir “contra o leitor” pode significar escrever que a Terra é redonda para gente acostumada a ouvir que a Terra é chata. É claro que é muito mais fácil (e moralmente justificável) defender uma literatura “contra o leitor” depois da ocupação e do nazismo do que num mundo medido por “likes”. Que moral pode ter um leitorado de ex-colaboradores arrependidos na França ou na Áustria? A literatura “contra o leitor” é também a literatura de (e por) um novo leitor. E é essa a beleza radical da provocação de Lindon e de Bernhard.
Esse projeto civilizatório se perde (a ponto de se tornar inconcebível) quando a literatura é sequestrada pelo gosto. E aí não resta espaço para alargar a consciência e a compreensão do mundo para além daquilo que já é apreciado e conhecido. A novidade passa a ser uma palavra vazia, no máximo um eufemismo para pretensão. Dizer hoje que se escreve “contra o leitor” é imediatamente associado à suposta arrogância e à presunção de quem diz. É uma heresia e um paradoxo, uma contradição em termos, além de ser considerado uma ofensa. Porque o leitor é um cliente e, como mandam as regras do bom comércio, o cliente vem em primeiro lugar. É o tempo do academicismo, da aplicação das normas e das convenções, do pensamento pequeno e da visão curta. É o tempo de sentenciar que tal romance é chato ou bem construído, bem ou mal escrito, que os personagens são psicologicamente críveis, de carne e osso ou não. “Aquilo que você falou sobre o editor francês era piada, não era?”, o escritor colombiano me perguntou quando saímos do debate.
“Não”, eu respondi.