O texto abaixo foi publicado originalmente na Cahiers du Cinéma, número 605. Na sequência, uma entrevista concedida a Uri Klein, do jornal israelense Haaretz, por David Perlov, tema da mostra “David Perlov: epifanias do cotidiano”, em cartaz no cinema do IMS-RJ entre os dias 11 e 20 de março de 2011.
Por Ariel Schweitzer
Testemunhos traduzidos do hebreu para o francês por Ariel Schweitzer e do francês para o português por Pedro Maciel Guimarães
“Maio 1973, eu compro uma câmera. Começo a me filmar, para mim mesmo. O cinema profissional não me atrai mais. Eu filmo dia após dia, à procura de outra coisa. Eu procuro, antes de tudo, o anonimato. É preciso mais tempo para aprender a fazê-lo”. Foi com essas palavras que David Perlov abriu seu diário cinematográfico, rodado durante três décadas, em 16mm e, depois, em vídeo, obra considerada hoje como a mais marcante da escola documental israelense.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1930, filho de um mágico itinerante, David Perlov chega a Paris em 1952 para estudar pintura. No entanto, ele se apaixona pelo cinema ao descobrir Zero de conduta, de Jean Vigo. A partir de então, fica amigo de Henri Langlois, de quem se torna assistente na Cinemateca Francesa. Em 1957, realiza seu primeiro curta-metragem, Tante chinoise et les autres, realizado a partir de desenhos satíricos de um menina de 12 anos. Esse filme marca a passagem de Perlov da pintura ao cinema.
David Perlov emigra para Israel em 1958 e instala-se em um kibutz e depois em Tel Aviv. Na época, o cinema israelense é dominado pelo documentário de propaganda, porta-voz de instituições oficiais. Apesar de numerosos conflitos, Perlov se impõe como cineasta exigente e livre e revoluciona a prática documental, introduzindo uma dimensão subjetiva e poética. Influenciado pela Nouvelle Vague francesa, seu filme Em Jerusalém (1963), premiado no Festival de Veneza, anuncia o aparecimento do cinema moderno em Israel.
Nos anos 70, Perlov realiza dois longas-metragens de ficção: La Pilule, uma comédia burlesca; e 42:06, biografia de David Ben Gourion. Esgotado devido aos vários conflitos com os órgãos cinematográficos de Israel, ele decide abandonar o cinema profissional e se dedicar à realização do seu Diário. Ele começa, então, a filmar sua família, seus amigos, suas viagens (sobretudo na França e no Brasil, seu país natal). Apologia da vida urbana, do espetáculo de rua, e visão poética do universo íntimo e familiar, o filme destaca o cotidiano, do qual o cineasta consegue revelar a profunda humanidade e a carga existencial.
David Perlov gostava de citar uma frase da poetisa israelense Dalia Rabikovitz : “Diante da realidade, a única bandeira que eu posso levantar é a bandeira branca”. Desejando dedicar o Diário à observação do seu cotidiano, ele vê a política “invadir” e praticamente dominar o filme. O Diário é marcado por uma forte tensão entre a pequena e a grande história, oferecendo-nos uma versão inquietante dos acontecimentos dramáticos que atravessam o Estado de Israel a partir da Guerra de Kippour.
Paralelamente ao seu trabalho de cineasta e de professor (no departamento de cinema da Universidade de Tel-Aviv), David Perlov fotografava intensamente. Seu último ensaio documentário, Minhas imagens 1952/2002, terminado no ano da sua morte (2003), foi realizado a partir de fotos tiradas pelo cineasta durante cinquenta anos (1952-2002). Ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a prática fotográfica e homenagem a fotógrafos que ele gostava, esse filme testamento é também o balanço de uma vida marcada pelo amor do cotidiano e pela paixão pela arte. Em 1999, David Perlov recebe o Prêmio Israel que, pela primeira vez, recompensa uma obra cinematográfica.
Os depoimentos a seguir foram recolhidos em 1996 por Rachel Bileski Cohen e Baruch Blich.
DAVID PERLOV: REFLEXÕES SOBRE MEU TRABALHO
O Diário
Eu faço filmes documentários e não ficções. A aleatoriedade da minha vida me levou a essa escolha, e, no fundo, eu gosto muito desse gênero. Eu sempre quis escrever uma autobiografia fictícia que tivesse também um caráter pictórico. Quando comecei o Diário, tive oportunidade de trabalhar numa perspectiva autobiográfica.Eu tenho um grande amor pelas pessoas que filmo. É preciso ser paciente com elas, pois, ao filmá-las, arrancamo-las de suas vidas privadas.
Como captar um estado psicológico, como apreender um personagem, como descrever um lugar: minhas escolhas são bastante subjetivas. Minha personalidade, por eu ser autor, é muito dominadora. Eu utilizo o dispositivo cinematográfico como intermediário entre a realidade e o espectador e imponho minha visão sobre os materiais.
Assim, meu Diário é minha carteira de identidade. Eu tento tocar a fronteira frágil entre a vida e a arte. Expor-se assim em sua arte é bastante ameaçador: sua vida privada e seus nervos estão ao alcance de todos.
Eu gostaria de fazer um filme em forma de fábulas: rodar um plano – para levantar uma questão – depois rodar um outro que fosse uma resposta visual. Eu gosto de procurar, inovar…
A câmera
A câmera vê, mas ela não pensa; é o homem que está atrás dela que pensa. Se a câmera não for animada pelo espírito do homem, ele se limita a ser um instrumento voyeur e morto. Pode-se afirmar que, paradoxalmente, as câmeras que filmam sem nenhuma seleção prévia, como as câmeras de vigilância, fornecem os documentos mais reais. Mas, trata-se de um pensamento especulativo.
A filmagem – a montagem
Nesse Diário, minhas escolhas impõem-se constantemente, antes e depois da filmagem. Elas são perfeitamente intencionais, mesmo se elas parecem, às vezes, fruto do acaso. No momento da montagem, de alguma maneira, colocam-se os materiais sobre a superfície plana, “limpa”, necessária para construir analiticamente o filme, mesmo se ele trata do cotidiano mais banal.
Eu gosto muito dos filmes de Jean Rouch e de Frederick Wiseman, mas minha aproximação é diferente. Durante a filmagem, eu opto por uma seleção, a melhor possível, que é escolhida deliberadamente. Eu não enceno os fatos, estes existem fora de mim, na vida real. Minha intervenção é no plano psicológico: eu procuro determinar as relações entre os objetos e entre as pessoas filmadas. Eu gosto das relações maravilhosas que eu posso criar entre eles: são minhas tesouras que determinam as relações.
Eu rodo uma quantidade alta de planos: em média 600 em cada capítulo do Diário. É por isso que gosto tanto de trabalhar com montadores experientes, que me permitem controlar essa grande quantidade de imagens. Pelo trabalho de montagem, procuro também revelar o processo de criação, os materiais fílmicos, as “pontas” da montagem. Mas não quero que essa forma de reflexividade torne-se uma ideologia, pois me arrisco a cair no maneirismo, na piscadela para cinéfilos, e isso não me interessa. Para mim, o essencial está nos planos em si e não no encadeamento entre planos e sequências: as pessoas, seus olhares, suas maneiras de andar, seus gestos. O filme não revela toda sua estrutura interna, como se existissem sempre correntes subterrâneas, que são enganadoras.
O comentário
Eu crio também uma ordem para minha própria existência. Meu comentário em off determina a narração e é um instrumento do pensamento e não do sentido. A princípio, eu quis gravar o comentário no lugar da filmagem, pois a maior parte das frases nasceram enquanto eu filmava. Finalmente, eu decidi não utilizar o comentário “bruto”, mas retrabalhá-lo, “limpar” as frases para que ficassem gramaticalmente certas. O comentário é, então, gravado em estúdio, já a filmagem é mais espontânea.
A palavra
Eu decidi fazer um diário que não ignore a literatura, pois não aceito a ideia de que o documentário não tem nada a ver com a literatura. Para mim, o cinema documentário é bastante literário: na vida, as pessoas falam muito e contam coisas.
Eu opto por uma câmera estática quando filmo alguém falando. A palavra também é uma forma de representação, de espetáculo e minha câmera tende, então, a se apagar. A dimensão linguística é muito importante no Diário. A língua é um instrumento do pensamento, e a visão e a audição são instrumentos do sentido, da percepção.
A televisão
O cinema documentário me interessa somente na sua dimensão poética. O gênero documentário tornou-se muito jornalístico, muito técnico, com pesquisas de campo prévias, documentais, que sufocam o assunto antes mesmo que o autor comece a criar. Minha sensação, como cineasta, é de que, com a televisão e o vídeo, entramos numa nova era. Eu pertenço, entretanto, a uma geração de transição, muito confusa, e a televisão não faz ainda parte de mim, do meu mundo, mesmo que eu tenha sofrido influência dela.
Existe um conflito entre a linguagem do cinema e a da televisão, assim como uma diferença no que diz respeito à recepção. Com a televisão, a sala de cinema passa a não existir mais – assim como a tela grande e a obscuridade –, ou seja, não há mais todo o aspecto cerimonial ao qual o cinema nos habituou. O consumo televisivo em casa é muito diferente no plano acústico também, pois se absorvem e se integram barulhos do apartamento e da rua. Esse é um ritual de outro gênero, sem venerações, como o fogo da chaminé que costumamos olhar nas noites de inverno.
No cinema, o filme tem um princípio, um meio e um fim. Já a televisão transmite continuamente, ela está sempre ligada, da manhã até a noite, mas não a olhamos intermitentemente. É um tipo de melodia vulgar que ouvimos 24 horas por dia e que faz parte de nosso cotidiano. Mas, apesar de tudo, ela tem seu charme.E
u tenho hábito de comparar a televisão e a luz refratada de seu interior aos vitrais e seus efeitos condensados de cores. A luz desses vitrais provém também do atrás, do sol, e ela projeta através do vidro uma grande variedade de cores movimentadas e supreendentes. Nos vitrais de igrejas, há algo de fantástico que lembra um pouco a televisão (pela sua tecnologia). Mas, os vitrais são inferiores aos afrescos, que não têm luz e ainda assim conseguem nos maravilhar, pois sentimos a marca pessoal do artista. Se comparo a televisão aos vitrais, o cinema é o prolongamento dos afrescos.
Haaretz, Israel, 1993 (Diário, 1973-1983)
Excertos de uma entrevista concedida a Uri Klein com Tradução de Marcos Soares.
Haaretz: Diários frequentemente acompanham a vida de um escritor. Mas no seu caso, um dia você simplesmente decidiu parar de filmar, parar de “escrever”. Como isso aconteceu?
David Perlov: Foi uma questão puramente prosaica. No momento em que o Channel 4 entrou em cena e decidiu investir em Diário, o projeto passou a ser programado. Eles me perguntaram quantos capítulos eu já tinha e quando eu disse que tinha cinco, eles me pediram para fazer mais um, para que eles pudessem exibir o filme de segunda a sábado. Quando eu comecei a filmar em 1973, eu não tinha ideia do que sairia do projeto, se alguém sequer viesse a assistir o que eu filmava. Eu só sabia que queria continuar trabalhando com cinema, mesmo que ninguém encomendasse filmes de mim.
Haaretz: Quatro anos se passaram desde que você conclui Diário. Foi duro parar? Você não teve vontade de continuar?
Perlov: Não, pelo contrário. Queria me livrar do projeto devido a seu tom autobiográfico e frequentemente doloroso. Eu fiquei viciado e quis dar uma pausa. Mas agora alguém em pediu para dar sequência ao filme, como se faz com livros. Pode ser interessante.
Haaretz: Minha pergunta pode soar ingênua, mas tive a sensação de que, depois da exibição dos filmes no Museu de Tel Aviv e as resenhas elogiosas que nenhum outro filme israelense jamais recebeu, você receberia centenas de propostas, da televisão, da fundação Quality Films… Mas isso não aconteceu e não entendo o porquê.
Perlov: Não tenho ideia. Talvez porque eu pareça severo demais. Mas, na verdade, não sou severo.
Haaretz: O que você tem feito?
Perlov: Não tenho estado no melhor dos humores. Quando você filma um diário, o filme substitui a vida. É uma grande experiência. E enquanto você está na mesa de edição, também é muito prazeroso porque você tem controle sobre a vida – suas crises, suas dores. Você pode recriar a vida ou fragmentá-la. Sobretudo, você pode criar harmonia. Quando você retorna à vida real, ela é muito menos harmoniosa, dura muito mais do que seis horas.
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DVD David Perlov: Diário 1973-1983 | Loja do IMS