Clique aqui para ler a carta anterior. Clique aqui para ler a carta seguinte.
Prezado Xico,
Se a tristeza é senhora, como você me faz crer em sua última e pungente missiva, manda essa sirigaita com todos os seus tons de cinza ir ali na esquina da praia. Que vá roçar nas ostras, catar coquinho e procurar tatuí na areia.
É carnaval, meu frevolente folião pernambucano.
É aquele interregno fundamental no calendário de nosotros, eu, você, nós dois, os últimos românticos de Pindorama. São três dias de folia em que não existe amor em São Paulo, Salvador, no Rio ou nem mesmo naquele carnaval de máscaras sorumbáticas de Veneza. É o bicho quem pega, Cupido já era.
Larga de ser bobo, meu nego, sai do chão e vem comigo no bloco que interessa. É a festa das carnes. O Grêmio Recreativo Desiludidos do Amor saúda a imprensa falada, escrita e televisada e deixa de apresentar o enredo “Amar é foda, e nós, fodidos e mal pagos, damos graças a Deus”.
É hora de vestir a camisa listrada, deixar esse computador com a bateria arriada e sair por aí. Ligar a tecla F. Fui. Hoje não tem Lupicínio, Adelino ou qualquer trovador triste que embala o berço do sofrimento nacional e nos coloca, semana um, semana outro, chorando em público as pitangas das gostosas que seguem o destino da lua, botam o pé na rua e se vão sem mais.
Hoje o que tem no cardápio destas mal traçadas é a orgia, a volta do “meu moreno fez bobagem”, a gandaia, o levanta a saia. Meu GPS lê o caminho que indica o bafo da onça. É nessa onda que eu vou, adventista fiel que sou, uma vez por ano, da lei escrita nos estandartes dos blocos do Rio.
Hoje, meu rei do maracatu e de todas as suas inevitáveis rimas carnavalescas, hoje não tem Paulo Mendes Campos. Ninguém aqui vai plagiar “O amor acaba”. Hoje eu vou sair de Buda, e espero encontrar outras lá no “Xupa, mas não baba”, no “Enxota que eu vou”, no “Cutucano atrás”. É tudo que eu tenho a declarar de romântico. É como a minha língua roça hoje a língua do Camões. Se me sobrar fôlego, se a mulata que eu vou pendurar no pescoço estiver com o peso certo que nós combinamos de ela ter, eu vou brincar também no “Perereca sem dono” e no “Só o cume interessa”.
Hoje, se você me perguntar pelo texto mais bonito da lírica nacional, eu declamaria contrito a marchinha do Orlando Silva, aquela que diz “O que que há com a sua baratinha, que não quer funcionar, bota esse motor em movimento, filhinha, e vamos passear”.
Os idiotas da objetividade vão argumentar com o Amor de Carnaval, essa quimera idiossincrática de colombinas que tantas lágrimas custaram aos pierrôs que nos antepassaram. Eu vou responder que amor é sem aposto. Amor é, se basta, e ponto. Cabe nele toda a imaginação que se colocar entre as pernas do “m”, os “buracos” do “o”, os rugidos do “r” e o começo do imenso vocabulário do desejo que o “a” introduz.
Com “a” eu escreveria azul, mais exatamente calcinha azul, e adiante explico o motivo. Antes eu quero dizer que foi comovente, meu bom Xico, você ter se lembrado deste pobre escriba como testemunha daquela cena, seu fim de caso na calçada da sorveteria no Jardim Botânico.
Nós somos uns sertanejos da alma. Por mais que ouçamos, por mais que elas batam a porta e cuspam a palavra maldita, nunca aprendemos a dizer adeus. Dói, e lá estava você na sorveteria, lambendo o sorvete frio de mais uma separação.
Era o seu último beijo, aquele que eu presenciei na porta da sorveteria, e ele devia estar regado com acidez nordestina do taperebá. Eu vi a cena ao largo, não sabia da desdita. Eu não sabia que o amor também acabava numa sorveteria de mil frutas num canto descolado do Rio, palmeiras imperiais ao fundo. Peço-te desculpas tardias se lá estava eu passando ao lado, todo serelepe, atracado na aventura de um novo amor, lambendo a suavidade romântica de um maracujá com chocolate branco.
Mas, tergiverso, meu camarada.
O azul a que me referia veio antes. Era o tom Parker King de uma calcinha adoravelmente azul. Você e a sua lindíssima moça, esta mesma do parágrafo anterior, do fim do romance na sorveteria, começavam um ousado jogo amoroso. Ela usava uma.
Foi assim.
Você estava lançando um livro no Leblon, na pequena livraria da Dias Ferreira que também já não existe mais. Foi no já distante ano de 2006. Foi quando eu vi a calcinha.
Enquanto eu te abraçava na porta da livraria, meus olhos se esbugalharam com a cena de que nos fundos da loja havia uma moça morena, ela estava de cócoras avaliando os livros de uma estante, o cós era baixo, o formato calipígio de sua alma morena era lindo, e ela deixava visível a tonitruante calcinha azul que até hoje ribomba em meu espectro ótico.
Nunca te disse, mas como resolvemos expor em público tudo que nos vai de inquietação, cantar nossos sambas-canções da desafinação amorosa em forma de carta na frente de todo mundo, eu vou dizer agora. Aquela cena me provocou uma invejinha branca (eu nunca tinha tido a aparição de uma calcinha azul) e inspirou uma crônica.
Eu fiz o de sempre no texto. Misturei alhos com bugalhos, na certeza de que tudo que se nos passa na retina, se bem virgulado, uns verbos exóticos, umas palavras antigas servindo de argamassa, tudo um dia acaba impresso no jornal. Me aproveitei da visão da sua bela namorada e, mais uma vez evocando Rubem Braga, perpetrei um arrazoado melancólico sobre o duro ofício de escrever crônicas.
Um trecho de “O mistério da calcinha azul”:
“Eu poderia fingir que acho normal. Poderia colar um ar blasé no rosto e seguir em frente. Mas, infelizmente, não sou jovem o suficiente para passar a impressão de que já vi tudo nessa vida. Acho que Braga faria o mesmo e estamparia o fato, o enigma da calcinha azul, aos interessados em debater o que seria a crônica carioca, de onde surgem os assuntos. Imagino que ele descreveria a cena com o mesmo delicado estupor admirativo que usou em um de seus clássicos, ao ver na praia a recém viúva em biquíni.”
Tá me entendendo, Xico?
Eu vi a calcinha que bandeirava o começo do seu namoro, quando é tudo azul, todo mundo nu, e depois vi na sorveteria os óculos escuros da cena final, quando tudo é luto, o mundo caiu, e só existe o verbo cego das bocas cansadas. Enfim, meu caro, eu vi o início, o fim e também o meio, quando você teceu em público, em textos clássicos nos jornais, as loas de macho orgulhoso pelo amor dessa bela leoa.
Definitivamente, isso foi há muito tempo. Deve ter sido por esta época que o tal hotel atrás da Central do Brasil, estrela de sua última carta, ganhou o nome de Batuta.
(O hotel se chamava Nova Central. Uma tarde, de algum daqueles quartos, uma mulher gritava furiosos “batuta, batuta”, com a ênfase indisfarçável de que aplaudia aos berros a eficiência de um amante da nobre arte. No dia seguinte, reza a lenda, o proprietário do estabelecimento deu entrada na Secretaria de Urbanismo com o pedido de um novo nome para a casa, e lá está ele até hoje, piscando, bruxuleante, Hotel Batuta, em homenagem àquele herói de quem a história não registrou o nome.)
Enfim, meu grande batuta romântico, eu só estou te contando tal porque é fevereiro. Tempo de esquecer os beijos idos, os amores sofridos, e hora de cair de boca nessa alegria fugaz, nessa ofegante epidemia que se chama carnaval. Tudo vai passar. Olha que vida boa olerê, olha lá a ala das novas calcinhas azuis, outra ala inteira de gostosas-ainda-mais do que aquela que na última carta bateu a porta e foi embora. Melhores dias verão. É hora de bater fundo no bumbo, atender o convite do “Me beija que eu sou cineasta”, do “Vem ni mim que eu sou facinha”, e sair cantando a marcha do Carequinha, aquela do “Avança, minha gente, que a pipoca tá quentinha”.
É isso, grande Xico. Desculpe se hoje prefiro a pândega e fujo do nosso tema. Cartas de amor são ridículas, todos sabemos e curtimos. Em tempos de carnaval, elas soariam imorais.
Evoé e aquele abraço.