Segue a pleno vapor a 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e os filmes vão se acumulando nas telas e na memória. Já que não dá para falar de todos, vou comentar aqui, de modo quase telegráfico, alguns que se destacam por um ou outro motivo.
De maravilhas bem conhecidas (os clássicos de Ozu, Kubrick, Resnais…) nem é preciso falar. Todos valem a pena. Vamos aos “outros”. Já que todo filtro é subjetivo, começo pelos que mais me tocaram.
O documentário A Fuller life, sobre o grande Samuel Fuller, realizado por sua filha Samantha (presente à mostra), é uma joia de primeira grandeza, sobretudo por trazer à luz um rico material inédito encontrado pela diretora em meio aos objetos de seu pai: filmes realizados por ele no front da Segunda Guerra, quando serviu no pelotão Big Red One, celebrizado em uma de suas obras-primas. Nunca ficou tão clara a frase de Fuller sobre o cinema como um campo de batalha.
A guerra e a festa
Se em Fuller (qualquer que seja o tema ou o gênero) o cinema é guerra, em Ivan Cardoso ele é festa. O bacanal do diabo e outras fitas proibidas de Ivan Cardoso testemunha esse carnaval permanente do espírito e da inteligência ao juntar vinte e quatro curtas realizados entre 1971 e 2013 pelo criador do “terrir”. Cinema de baixo orçamento e alta invenção, que une a arte de vanguarda (Cage, Joyce, Oiticica, Bataille) à tradição da chanchada e à cultura popular brasileira, num descarado curto-circuito trash.
Parodiando o policial, o melodrama, o terror, o filme de aventuras e até o documentário patriótico, Cardoso mistura Egito com Copacabana, transforma Bob Dylan num garanhão entre ninfetas cariocas, ultrapassa as fronteiras do pornográfico expondo o corpo feminino num paroxismo cafajeste que acaba por fazer sua própria crítica. Tudo é faz-de-conta nesse compêndio criativo de um de nossos cineastas mais independentes e talentosos.
Outra veterana das batalhas “marginais”, a atriz-diretora Helena Ignez, traz à mostra duas obras marcadas pelo signo da urgência, o longa semidocumental Feio, eu? e o curta ficcional Poder dos afetos. O primeiro, feito a partir de uma oficina de atores realizada no Rio, é, na definição da própria realizadora, um “filme-manifesto”, a afirmação/celebração dos marginalizados em nossa sociedade (o negro, o índio, o pobre, o louco), em torno de dois eixos explícitos: a desconstrução da beleza convencional operada por Rimbaud em Uma temporada no inferno e a generosidade da visão antropológica de Eduardo Viveiros de Castro.
Já Poder dos afetos, apresentado como um esboço de personagens e situações para o próximo longa de Helena, Ralé, traz uma série de situações paralelas: a relação entre uma beldade (Djin Sganzerla) e um ladrão, a atividade mística de um ex-conde (Ney Matogrosso) convertido à ayahuasca, um filme dentro do filme, realizado por um menino-prodígio que remete parodicamente a Orson Welles e a Rogério Sganzerla. Cinema de paixão, invenção e humor.
Beleza em excesso
No polo oposto – e um dos encantos da mostra é justamente revelar a amplidão e variedade do espectro do cinema – chegamos à estética extremamente rebuscada de Wong Kar Wai e seu O grande mestre. Para quem conhece um pouco da obra do diretor de Amor à flor da pele, 2046 e Um beijo roubado, a novidade aqui é a mudança de tema: sai o amor, entra o kung fu. É a história romanceada de Yip Man (Tony Leung), mestre, entre outros, de Bruce Lee.
No mais, é o mesmo maneirismo formal. Não há praticamente nenhuma imagem “crua”, pois todas são submetidas a alguma distorção em sua composição (pela contraluz, pelas névoas, filtros, reflexos, fusões) e em seu ritmo (pela câmera lenta ou acelerada, pelos freezings etc.). Uma simples gota de água – ou de sangue -, filmada em hiperclose, em câmera lenta, sob um ruído estrondoso, converte-se numa apoteose audiovisual. Os fãs não se decepcionarão, até porque o amor não realizado, recorrente na filmografia do cineasta, também comparece. Mas é um filme bonito demais – com toda a força negativa (excesso, demasia) que o advérbio comporta.
No departamento das boas descobertas, destaca-se o venezuelano Pelo malo (“Cabelo ruim”), de Mariana Rondón, premiado como melhor filme no recente Festival de San Sebastián. Situado numa periferia braba de Caracas (semelhante em quase tudo à das grandes cidades brasileiras), conta a história de um menino mulato cuja obsessão é alisar o cabelo e se tornar um cantor de sucesso. Uma narrativa atenta às sutilezas do olhar e à construção da identidade de cada personagem e, ao mesmo tempo, porosa à vida social e política, tendo como discreto pano de fundo o messianismo em torno do então agonizante presidente Hugo Chávez.
Meninos infratores
Outra sensível mirada feminina ao universo dos meninos desajustados é De menor, da estreante Caru Alves de Souza. O filme, que venceu o recente Festival do Rio, toca no tema atualíssimo da redução da maioridade penal ao narrar a história de uma jovem defensora pública de adolescentes infratores. Um dos pontos de interesse do filme é o fato de ser ambientado em Santos, cidade pouco explorada em nosso cinema.
Outros filmes de destaque programados para os próximos dias: o documentário Outro sertão, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, sobre a presença de Guimarães Rosa na Alemanha nazista; Avanti popolo, de Michael Wahrmann, que traz Carlos Reichenbach como ator; Bertolucci por Bertolucci, documentário de Luca Guadagnino e Walter Fasano; 3x3D, de Jean-Luc Godard, Peter Greenaway e Edgar Pêra; Educação sentimental, o novo de Julio Bressane; e, para quem dispõe de tempo e paciência, O século do nascimento, de seis horas de duração, do filipino Lav Diaz, homenageado da mostra.
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