Doméstica, documentário de Gabriel Mascaro, é a concretização de um projeto aparentemente simples: registrar a vida cotidiana de empregadas domésticas pelo Brasil afora. O que o torna original e problemático – no sentido positivo da palavra, de suscitar problemas – é o seu “dispositivo” ou modo de produção: a câmera é confiada a sete adolescentes de diferentes cidades, cada um deles com a tarefa de documentar suas próprias empregadas.
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Resulta disso um filme heterogêneo, irregular, mas de uma riqueza ímpar naquilo que revela da formação da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, da imensa pluralidade de experiências humanas possíveis dentro dessa sociedade. Vemos na tela histórias muito diversas, ainda que algumas matrizes se repitam e um quebra-cabeças se forme aos poucos sem que haja a intervenção de uma narração explicativa ou unificadora.
Algumas conexões subterrâneas entre essas trajetórias são evidentes. Por exemplo: em pelo menos dois casos as domésticas retratadas são tidas como “pessoas da família” por terem sido criadas na roça com suas patroas, pois suas próprias mães e avós eram serviçais dos antepassados dos patrões. Seria possível traçar retrospectivamente essas árvores genealógicas até a época da escravidão.
O “agregado”
Aí reside talvez o cerne do filme, ou do complexo fenômeno social que nele aflora. A figura do agregado, tão bem observada por Machado de Assis e tão típica da formação nacional, tem sua versão contemporânea na empregada doméstica em grande parte dos lares da elite e da classe média: alguém que “é da casa”, mas vive no quartinho dos fundos e não compartilha dos privilégios de classe dos patrões. Uma relação ambígua, em que o afeto e a relação de exploração estão imbricados de modo quase inextricável.
Essa ambiguidade – que aparece sutilmente em filmes de ficção como O som ao redor, Bendito fruto e Trabalhar cansa – está presente a todo momento no documentário de Gabriel Mascaro e se expressa como que a contrapelo no discurso de patrões e empregados. Por exemplo, quando uma das adolescentes-cineastas mostra o que ela chama ironicamente de “suíte master” da empregada: uma cama, duas prateleiras em que se encaixa a duras penas uma tevê portátil, o espaço exíguo entre uma coisa e outra.
Ao contrário do que disseram alguns, não há nada de panfletário nesse filme, que recusa uma manipulação das imagens e falas que poderia ridicularizar o discurso dos patrões. A consideração e o afeto expostos são genuínos, ainda que evidentemente cada um dos retratados construa sua própria imagem com um tanto de realidade e outro tanto de autoengano e fantasia. O imaginário, como sabemos, também faz parte da realidade. Além do mais, dado o dispositivo adotado de antemão, não se trata propriamente de um filme sobre as domésticas, mas sobre sua relação com quem as vê – no caso, seus jovens patrões, os sinhozinhos e sinhazinhas de nossa época.
Existe humor, existe ternura nessas relações, mas o que impede o filme de edulcorá-las, de apresentá-las como meramente leves e risonhas, é o substrato trágico que emerge quando menos se espera. E aqui entra outro caso de conexão subterrânea entre as histórias. Numa delas, num barraco de favela, uma mulher trabalha como doméstica, cuidando da casa e dos filhos de outra doméstica, que presta serviço numa casa burguesa. Em outra cidade, uma das empregadas mais divertidas do documentário, uma baiana gordona que gosta de cantar e dançar, cai de repente em prantos ao contar que seu único filho morreu durante um período em que ela estava na casa dos patrões. Uma história é o contraplano da outra, ainda que ocorram em estados diferentes.
Doméstica x Domésticas
Essas mulheres que deixam os próprios filhos para cuidar dos filhos dos outros são, de certa forma, a atualização da “mãe preta”, da ama de leite dos tempos da escravidão. Não surpreende que essa percepção surja claramente no filme de um diretor pernambucano. Aparentemente, os artistas e intelectuais de Pernambuco beberam Gilberto Freyre junto com o leite materno – não importa se o da mãe biológica ou o da “mãe preta”.
Doméstica, de certa forma, é o oposto simétrico de Domésticas (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival, que entrelaça várias histórias de empregadas. Ficção supostamente inspirada em depoimentos de domésticas “reais”, o filme de Meirelles e Olival é um exemplo acabado de construção ideológica, em que a encenação, a montagem e até a prosódia das atrizes servem para reforçar estereótipos e folclorizar a categoria social que se pretende retratar. Aqui, para efeito de cotejamento, uma cena particularmente reveladora de Domésticas: