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Querida Vilma,
perto de sua atividade febril flanando por academias, escolas, parques e jantares, sou um tiozinho sedentário. Cá estou encerrando o superferiado que passei fechado em casa organizando estantes, “desbastando-as”, como me disse há pouco na Mercearia S. Pedro (são três da manhã e estou vagamente bêbado, ou seja, vagamente vago) o Marçal Aquino, que acabou de se mudar e conseguiu corajosa e talentosamente reduzir seu acervo de 54 anos de leitura a meros três mil livros.
Afinal, Vilma, para que um sujeito deve ter mais de três mil livros, ou 300, ou apenas três? Minha última mudança (última não, a mais recente, como uma vez me disse um vagabundo de rua no Rio de Janeiro, depois que ao me pedir, mais uma vez, um cigarro, eu disse “tá, mas é o último, beleza?”, me replicou “último não, camarada. Mais recente. Nunca diga último”, um dos grandes ensinamentos que a rua me trouxe), minha mais recente mudança, da casa da minha ex-mulher, trouxe a este apartamento cerca de seis mil livros, sem contar as centenas de revistas e recortes de jornais; e é esta “poupança” que passei desbastando todo o feriado. Questões telúricas se me assoberbavam: lerei mesmo este livro? Esse monte de livros ruins que me enviaram, com dedicatórias, devolvo-os ao Grande Oceano da Informação Indiferenciada (sebos ou oficinas de reciclagem de papel), ou quem sabe me detenho sobre eles mais uma vez, abrindo qualquer exemplar ao acaso, para me deparar com a Frase Genial Perdida, aquela pela qual vivemos durante toda a nossa vida entre bibliotecas, livrarias, sebos e catálogos de velhos alfarrábios?
Resolvi que precisava dispensar ao menos quinze caixas. Os livros mais bacanas foram bater em Capão Redondo, nas mãos do Ferréz. O autor de Capão Pecado organizou, junto com o Mano Brown, uma bela biblioteca em um terreno onde antes havia funcionado uma boca de fumo – que visitei, junto com o bibliófilo José Mindlin, para uma reportagem na revista Trip (dá pra ler aqui). Quando juntei as bibliotecas com minha ex-esposa, havia muitos livros repetidos – lá se foram para a nova biblioteca que o Ferréz montava em uma casa que ele mesmo comprou, no Jardim Comercial, uma das muitas quebradas do Capão. Na separação, para sair mais leve de minha ex-casa, mandei para lá mais meia-dúzia de caixas. É reconfortante saber que meus livros “voltam” ao lar – é que morei no Capão dos 2 aos 8 anos, quando ainda era um bairro da zona sul isolado entre vastas porções de mata atlântica original, não a atual cidade de 1 milhão e 200 mil pessoas.
(Nota de Bicha Ressentida: doei/vendi cerca de cem livros que me foram enviados com dedicatória e tudo – quase todos livros que ganhei sem pedir. É triste, mas isso acontece. Antes de passá-los adiante, porém, conforme a etiqueta, arranquei as páginas com as dedicatórias. Afinal, vai que um deles reencontra o próprio livro num sebo, dedicado a mim. Imagino os bons pensamentos que o escritor me dedicaria. Já me aconteceu isso, e foi péssimo. Eu estava à toa em Porto Alegre, entrei num sebo da Rua da Praia e topei com a lomba azul de um livro meu. Abri-o e reencontrei a sensual dedicatória a uma jornalista gaúcha que havia conhecido em São Paulo. Lembrei que ela mesma tinha reiteradas vezes me implorado pelo livro, e me fez sair do bar, voltar para casa, retornar até lhe dar o mimo em mãos. Ela poderia ao menos ter sido discreta e eliminado minha dedicatória, não acha, Vilma? Comprei o livro, envelopei-o e mandei-o de volta, com uma nova dedicatória: ‘Perdeu este, querida’. Ressentida, eu?)
Enfim, Vilma, depois das primeiras desbastadas na estante, vi que ainda precisava me desfazer de mais livros, e eis-me aqui, espiando atônito todas essas lombadas coloridas. Há muita coisa que comprei ou ganhei que, por algum motivo, afetivo ou profissional, guardei, mas nunca li. Saudade do tempo em que dominava totalmente minha coleção: agora ela é uma biblioteca potencial, devo ter lido uns 60% no máximo, e há coisas que sequer folheei. Chega aquela hora de se perguntar: vou realmente ler esse troço? Pra que guardar essa enciclopédia Caudas Aulete que, sejamos sinceros, abri umas dez vezes nos últimos dez anos? Este livro de filosofia não ficaria em melhores mãos do que as minhas relapsas? E este esquisito livro de poesia que o amigo publicou, não encontrará leitor mais adequado nas futuras gerações? Vou realmente precisar das obras completas desse obscuro autor australiano? Até quando vou ficar levando esse peso nas costas?
No que caímos neste novo dilema – caímos, digo, porque você e sua biblioteca de dez mil livros devem saber como é complicado esse relacionamento -: em tempos de nuvem de informação, iPad e e-book reader, pra que ter tanto livro? Não seria muito mais ecológico, econômico e inteligente ter somente um Kindle que baixasse tudo o que precisamos pra ler? Guardar tanto livro assim não é uma veleidade pequeno-burguesa, um feito para impressionar visitas, ou, pior, para impressionar a nós mesmos?
Aconteceu algo parecido com as dezenas de envelopes e caixas com textos que juntei nas últimas décadas. Anotações, cartas, recortes, bilhetes, textos alheios, ideias para serem usadas mais tarde… mais tarde quando, Vilma? Me pegava estranhando aquele sujeito que havia guardado tanta tranqueira. Comecei a entender os “acumuladores”, aqueles radicais latifundiários de todo tipo de treco. Legião, eles têm até um programa de TV no Discovery Channel, o que quer dizer que é uma doença que se alastra: a doença das coisas (Perec tinha razão em seu As Coisas, quando radiografa os protagonistas: “No mundo deles, era quase regra desejar sempre mais do que se podia comprar”). No fim, são as coisas que guardam os guardadores, e eles não conseguem mais sair de casa, presos aos objetos que colecionaram durante anos, e dos quais não conseguem se desvencilhar. Eu os compreendo: um acumulador pretende nada menos que preservar o tempo, estacioná-lo, flexioná-lo até seu ponto de estátua – e, se o termo guardar também está relacionado com olhar (como no belo poema de Antonio Cícero, “Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”), o acumulador se tranquiliza apenas por olhar as coisas que juntou e vê-las ali paradas, tais como no momento em que foram colhidas, como se ele tivesse logrado, finalmente, paralisar o tempo que corre, ou, ao contrário, como se elas o tivessem encantatoriamente tornado jovem para sempre.
Há dois consolos em ver os livros enfileirados arrumadinhos nas estantes. Um é serem meus amigos (muitos são realmente pessoas com quem conversei, bebi, amei, ouvi histórias). Quem tem uma biblioteca jamais estará sozinho, eis o credo número um da Carençolândia que habitamos todos nós tarados por literatura. Outra tranquilidade me convém quando observo os livros que colecionei: a certeza de que um dia terei tempo suficiente para lê-los. Eles em si são uma cápsula do tempo futuro: lembrarão ao homem que serei que havia um homem preocupado com ele, com suas leituras, com seu tempo. Pobre homem.
Quanta besteira, Vilma. Mais meia-dúzia de caixas com livros esperam a visita de um comprador de sebos (mal aí, Ferréz, mas preciso faturar algum em cima). Enchi dez sacos de lixo com esse montão de cartas e pretensos tesouros que havia guardado para mim mesmo e joguei tudo fora. Por muito pouco não me coloquei ali junto.
P.S.1: Torci, como sempre, pelo Obama, mas é claro que se trata de um voto idealizado. Mal o negão foi reeleito e já chega com essa lenga-lenga de que Israel tem todo o direito de retaliar a Palestina etc. Em quatro anos, Guantánamo continua aí, assim como o embargo a Cuba, as intervenções em países como Afeganistão, e, você bem lembrou, os EUA estão há 10 anos em guerra e seu exército tem 70% de mercenários e 30% de pobres. No fundo, republicanos e democratas são tão parecidos quanto… tucanos e petistas, non?
P.S.2: Ah, sim: o Jurado C é um tal Rodrigo Gurgel, um crítico (?) que embananou as notas dadas aos indicados ao prêmio Jabuti, distribuindo zeros e dez aleatoriamente, o que acabou por influir canhestramente no resultado.
P.S.3: Os desastres do correio ou da minha recente mudança de endereço me privaram de conhecer o Dardará que você me mandou, mas vou atrás. Li a resenha do Amâncio e só por parecer um romance anti-realista já me interessou. Não acha que nossa literatura contemporânea está por demais infestada de realismo? Fica como mote para sua próxima carta…
P.S.4: Desta vez não mando nenhuma ficção como brinde porque acho que achei um esquete para nossa peça, mas não o terminei. Basicamente um cara está num divã contando seu sonho para a psicanalista, que enquanto isso fica checando sua página no Facebook, tuitando ou vendo a timeline do seu Instagram e fazendo “hum hum, hum hum”. O eixo é o que você sugeriu quando contou aquela história sobre o sujeito gritando no celular no ônibus sem se importar com os demais passageiros: o estar sem estar contemporâneo, esse nosso “estamos onde não estamos”. Que é, me parece, o lugar desta falsa carta…
Beijo,
Ronaldo