O tempo é curto, os filmes são muitos. Entre os vistos no fim de semana na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, três não podem deixar de ser destacados, comentados, recomendados: Winter sleep, do turco Nuri Bilge Ceylan, Acima das nuvens, do francês Olivier Assayas, e Dois dias, uma noite, dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne.
Se for preciso optar por apenas um, o mais indicado é Winter sleep, não porque seja necessariamente o melhor (e acho que é), mas porque os outros devem entrar em cartaz em algum momento no circuito comercial, e o filme turco, de mais de três horas de duração, ainda não tem distribuidor no Brasil.
As três horas passam de modo quase imperceptível, dada a habilidade com que o diretor Ceylan (o mesmo do aclamado Era uma vez na Anatólia) nos conduz por sua trama sutil de relações familiares e sociais, numa paisagem de beleza insólita, a pedregosa Anatólia central.
É ali, numa daquelas estranhas construções escavadas na rocha, à maneira de cavernas, que Aydin (Haluk Bilginer), ex-ator de meia-idade, administra seu hotel e convive com sua jovem mulher (Melisa Sözen) e com a irmã recém-divorciada (Demet Akbag).
Rústico, erudito e manipulador
Aydin é um personagem fascinante: de origem rústica e ao mesmo tempo de cultura refinada, ele discute grandes temas – religião, ética, progresso, tradição – em artigos para um jornal local, enquanto prepara sua grande obra, uma história do teatro turco, da qual ainda não escreveu uma única linha. Pensador desencantado, a um passo do cinismo, Aydin é sobretudo um manipulador dos sentimentos e emoções daqueles que o rodeiam, especialmente a esposa e a irmã, mas também os empregados, os camponeses e inquilinos que gravitam à sua volta, como servos à volta do seu senhor.
Cena de Winter Sleep
No ambiente do hotel, ora aconchegante, ora opressivo, quando não as duas coisas simultaneamente, Ceylan constrói, com uma mise-en-scène inspirada e um controle extraordinário da luz, um drama na fronteira entre o psicológico, o social e o metafísico. Não foi por acaso que ganhou a Palma de Ouro e o prêmio da crítica no festival de Cannes deste ano.
Acima das nuvens
Acima das nuvens, por sua vez, dá prosseguimento à reflexão cinematográfica de Olivier Assayas sobre as transformações e impasses da sociedade contemporânea, em especial a europeia.
Maria Enders (Juliette Binoche), consagrada atriz de teatro e cinema, é convidada a atuar numa nova montagem da peça com que iniciou sua carreira, vinte anos antes. Só que, desta vez, ela deve fazer o papel da executiva quarentona seduzida por uma jovem estagiária, e não o da estagiária, que ela encarnou na encenação original.
Aos poucos, a relação de Maria com sua assistente norte-americana (Kristen Stewart) reflete ou refrata o jogo ambíguo entre as duas personagens da peça. A equação se complica com a entrada em cena da turbulenta estrela em ascensão (Chloë Grace Moretz) que fará o papel da estagiária sedutora.
Com sua precisão e elegância habituais, Assayas “fala” (audiovisualmente, claro) de várias coisas ao mesmo tempo: envelhecimento, relações pessoais de poder, dialética entre arte e mercado, entre cultura humanista europeia e cultura pop americana e, sobretudo, a contaminação inevitável de todas as esferas da vida pela lógica do espetáculo e da celebridade.
Faz parte da sagacidade do cineasta embutir na própria matéria de seu filme essas tensões, ao fazer contracenar com a venerável Binoche uma estrelinha do momento como Kirsten Stewart (da saga Crepúsculo). Há ecos sutis de A malvada (de Joseph Mankiewicz), de As lágrimas amargas de Petra von Kant (de Fassbinder) e de Horas de verão, do próprio Assayas, diretor que incorpora naturalmente a erudição cinéfila em seu processo de criação.
Dois dias, uma noite
Por fim chegamos a Dois dias, uma noite, mais novo rebento do humanismo radical dos irmãos Dardenne. Aqui, com a concentração temporal expressa no próprio título, acompanhamos a saga da operária belga Sandra (Marion Cotillard) para tentar manter o seu emprego. Para isso, ela tem de convencer seus colegas de fábrica a abrir mão de um bônus de mil euros.
Alguns críticos questionaram a verossimilhança da situação e do drama de Sandra, mas o que importa aqui é a verdade essencial por trás do entrecho: uma conjuntura (ou um sistema?) social de escassez do emprego, em que os trabalhadores são jogados uns contra os outros num salve-se quem puder em que “cada um cuida de si e irmão desconhece irmão”, para dizer como Paulinho da Viola.
O que interessa aos Dardenne é examinar, nesse contexto adverso, o espaço que sobra para valores e sentimentos como a solidariedade, a compaixão, a fraternidade. A frase que mais se ouve no filme é “ponha-se no meu lugar por um momento”, e é disso que se trata, justamente: a faculdade, que estamos perdendo, de nos colocar no lugar do outro, de viver o seu drama.
Há algo de religioso nessa busca, mas de uma religião sem ilusões, sem dogmas, sem carolice. De pés no chão, literalmente, pois, com seu estilo habitual de acompanhar os personagens de perto, de preferência com a câmera na mão, os Dardenne nos fazem seguir a peregrinação de Sandra por ruas de terra, corredores, conjuntos habitacionais, oficinas, mercearias, becos – lugares desglamorizados onde pulsam os pequenos dramas de um grande cinema.