Megaeventos de indignação social

Correspondência

30.07.13

Leia a carta seguinte.

Crédito: Eduardo Sterzi

Querida Cristina Lasaitis,

Aproveitando essas cartas pra matar a saudade de nossos encontros e conversas e, principalmente, pra dizer que não esqueci de você nem do nosso compromisso de escrever um livro a quatro mãos. Alguma hora vai acontecer e em breve retomaremos a ponte Rio-São Paulo pra decidirmos os rumos desse projeto. Como você está nesse inverno de agitações sociais? Afinal de contas elas começaram por aí, nesse purgatório da riqueza e do caos. Aqui no purgatório da beleza e do caos o megaevento de indignação social, o surto espetacular de ressentimento político gerado em parte pela boa e velhíssima formação do precário Estado brasileiro cheio de capitanias hereditárias, coronelismos rurais e empresariais, máfias oficiais e não oficiais, estamentos, burocracias, incompetências e desperdícios planejados, enfim, as forças do atraso cercando as tais ilhas de excelência no que diz respeito a produção, competência e planejamento, de repente geraram um autêntico surto de massa, grito de urgência das multidões, explosão de raivas e frustrações escancarando o tal ressentimento político e social. Digo que esse show de indignação em parte teve a ver com reivindicações variadas que demonstraram a tal da conscientização publica exigindo uma nova postura dos políticos e dos comandantes do país, mas que por outro lado também teve a ver com micaretas, festividade espetacular, carnaval de protestos movidos por uma certa nostalgia do que esses jovens não viveram, tipo o auge do segmento de consumo Juventude como ponta de lança renovadora, revolucionária da sociedade nos anos sessenta e setenta. Não só esses períodos mas também uma espécie de linhagem recente de aglomerações reivindicativas nacionais que têm a ver com as Diretas e a superestimada época dos caras-pintadas (é óbvio que a pressão das ruas ajudou a tirar Collor da presidência, mas foi uma disputa familiar e outros fatores que deflagraram o processo: os caras-pintadas foram a cereja do bolo), e indo mais fundo ainda, com as revoluções modernas, francesa, americana, inglesa, luterana e todos os anarquismos, liberalismos, nazismos, comunismos etc por razões óbvias. É preciso lembrar também dos protestos recentes em Seattle, Londres, Occupy Wall Street, indignados espanhóis etc. Todas essas experiências parece que ficaram vagando no Neuroma (assim como temos Bioma e Urbeoma –  concentrações de espécies naturais e urbanas -, podemos chamar o habitat interno da mente de Neuroma, com sua fauna de acontecimentos sinápticos) e me trazem à lembrança uma tirada do assim chamado filósofo das comunicações Marshall McLuhan: ele dizia que as pessoas iam a um filme de Ingmar Bergman para ter uma sensação de profundidade filosófica, sensação de conscientização das vertigens emocionais e instintivas que constituem o tal do ser humano, a tal da condição humana. As pessoas estão precisando assistir ao espetáculo das encruzilhadas subjetivas porque na real já perderam ou não sabem mais lidar com suas introspecções. É como se a Razão tivesse virado um oitavo sentido. Eu acho que grande parte das motivações que levaram ao surto de protestos em massa tinham mais a ver com uma sensação de conscientização do que com qualquer outra coisa, por um fator muito simples: a complexidade de todos os problemas abordados nas passeatas. Complexidade negativa entranhada nos governos e na sociedade pelas forças do atraso. Complexidade positiva que tem a ver com o que afinal de contas não deixa o país falir ou sumir do mapa, ou seja, um mínimo de seriedade empresarial e esforços de empreendimentos e estudos e tentativas de moralizar o Estado, a competição, o consumo, a infraestrutura etc. As ilhas de excelência. O Brasil é um abismo que nunca chega porque não implode através de suas autofagias administrativas e nem explode em desenvolvimento tecnocientífico, social, político, cultural e toda essa lenga-lenga que já estamos cansados de saber e lidar cotidianamente. Complexidades negativas que não serão desenroladas apenas com atos de anarquia e festa participativa facebookeada. Complexidades positivas que devem ser observadas para que ponhamos em prática soluções já existentes (projetos, leis, trabalhos científicos, estudos sobre transporte e infraestrutura, soluções engavetadas).  SAÚDE EDUCAÇÃO TRANSPORTE FIM DA CORRUPÇÃO REFORMA TRABALHISTA REFORMA POLÍTICA REFORMA TRIBUTÁRIA FORA CABRAL FORA HADDAD FORA PAES FORA ALCKMIN FORA PODER FORA COPA FORA TUDO ISSO QUE TAÍ. Essas palavras eram emendadas umas nas outras numa berraria maiúscula que tocou midiaticamente os nervos da assim chamada nação brasileira. E os políticos reagindo como se vivessem realmente numa bolha de vou-me-dar-bem-com-grana-pública-e-que-se-foda-tudo-isso-que-taí. Normal em se tratando da historia do país. Dilma abandonada por Lula e despreparada como política tentou plebiscito de teor demagógico e até Renan, o Calheiros, veio com a história de transformar corrupção em crime hediondo. Por outro lado, baboseiras de slogans juvenis cheios de pseudoconscientização saíam das bocas no âmago da multidão fazendo com que alguma desconfiança em relação à rapaziada tomasse de assalto meus pensamentos. Normal em se tratando da história recente do mundo ocidental moderno e blábláblá. Vamos ver o que vai resultar do choque dessas duas caricaturas: políticos mafiosos e ridículos e juventude classe média movida por nostalgia revolucionária, movida por temas realmente pertinentes e por uma pseudoconsciência social. Sem esquecer das imagens-clichê da policia perdendo o controle e dos bandidos e idiotas vândalos descontrolados. Claro que policiais ou milicianos insatisfeitos com a política de segurança deviam estar infiltrados na multidão. Claro que, seguindo o argumento do surto de massa, malucos, ressentidos variados, vagabundos de vários naipes, sonsos e gente que nem sabe pra onde todo aquele vento reivindicativo sopra também estava infiltrada, escondida na multidão querendo colo pra sua frustração, delírio e hedonismo. Aqui no meu purgatório a Copa das Confederações e a vinda do Papa incrementaram mais ainda o inverno. Um tempo atrás futebol e religião eram ópios do povo, mas agora são mais do que nunca negócios e o povo só quer transparência neles. Daí que o povo disse “não somos contra a seleção, somos contra os gastos exorbitantes e ofensivos com os estádios que ficarão inúteis” e os já tradicionais “nada contra o Papa e a Jornada, mas sim explicações sobre o tal Campo da Fé onde haveria uma vigília e a última missa de domingo”. O Campo foi aplainado de forma precária sobre terreno de proteção ambiental, sem a menor condição, com material errado e outras falhas. Interessante ver a população equilibrando, conjugando crítica e cumplicidade. Cumplicidade com as paixões futebolísticas e religiosas e críticas ao que os governos e poderes fazem em nome delas ou com elas. Copacabana ferveu com a Jornada carimbando sua vocação pra capital do Rio, da cidade do Rio. Confesso que adorei toda essa agitação de inverno. Futebol, política, espiritualidade de massa, política, espetáculo das manifestações, festa sombria dos vandalismos, festa de guerra, surto da multidão, show de vertigens sociais no abismo que nunca chega. Inspiração pra muita coisa. E pra você, como foi o combo junho-julho envolto por essas agitações?

Grande beijo,

Fausto Fawcett

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