Em 11 de maio, quinta-feira, estreia no IMS Crônica da demolição, filme de Eduardo Ades sobre a história do Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal no Rio de Janeiro. Após a sessão de estreia, às 19h30, haverá um debate com o diretor e a equipe do filme (a montadora Eva Randolph e o fotógrafo José Eduardo Limongi), mediado por Hernani Heffner.
A história do Palácio Monroe é relativamente conhecida por todos que se interessam pela história do Rio de Janeiro ou por arquitetura. Eu me lembro de, criança, minha mãe me apontar a praça vazia e contar que ali existia um palácio. Acontece que, tanto para mim, como para a maioria das pessoas que conhece o caso, o Palácio Monroe faz parte das mitologias da cidade. A gente sabe que existiu esse prédio e que nenhuma explicação satisfatória foi dada para a sua demolição – e seguimos assim. De tempos em tempos, isso enseja uma matéria no jornal, repetindo os velhos boatos como as possíveis causas para a destruição, mas lidamos com isso nessa chave mítica. Mexe com as nossas emoções – alguns ficam indignados, outros saudosistas -, e permanece envolta em mistério.
Quem teve a ideia de fazer um filme sobre esse assunto foi meu amigo José Eduardo Limongi. Ele é paulista e mora no Rio desde que veio cursar cinema na UFF – foi quando nos conhecemos. Ele acabou conhecendo a história tardiamente, como adulto, e com esse olhar “estrangeiro”. Então ele não lidou com o caso nessa chave mítica. Para José Eduardo, logo ficou claro que era algo para ser discutido mais seriamente. Ele acabou me sugerindo a ideia porque a gente compartilha esse interesse pela arquitetura – e pela forma de fotografar arquitetura em cinema, algo sobre que a gente sempre conversou, e foi muito importante no momento da filmagem.
Numa etapa mais avançada do desenvolvimento, tendo já conseguido descartar a boataria, e com a pesquisa nos indicando hipóteses bastante sólidas para a demolição, é que percebemos que a história era outra. Era uma história de violência – sobre o aspecto absolutamente autoritário de nossa sociedade, em especial nos âmbitos político e econômico. É curioso, mas foi só aí é que percebemos de fato qual o diálogo do filme com o tempo presente – em específico as transformações no Rio para a Copa e as Olimpíadas. Claro que a gente já devia ter uma intuição, mas nesse momento ficou bastante nítido.
A gente saía nas ruas para filmar e encontrava milhares de tapumes, a cidade toda revirada. Era um cenário muito parecido com o que a gente via das fotos dos anos 1970, com a construção do metrô e a verticalização do centro. Ou com o período da construção do Monroe, da Avenida Central. No fim das contas, esses três momentos retratados no filme, as décadas de 1900, 1970 e 2010, são marcados por transformações muito radicais na cidade – e feitas de uma forma muito violenta e, em linhas gerais, com as mesmas motivações. Mas a gente poderia incluir mais períodos – por exemplo, os anos 1920, com o brutal desmanche do morro do Castelo, a pretexto de sediar uma feira internacional. Só não estava no nosso escopo narrativo.
Foi com base nessa noção da violência, ou ainda do “crime contra o patrimônio”, como alguns se referem ao caso do Monroe, que acabamos chegando à conclusão de que este seria um filme policial. Escolhemos entrevistados com base no seu grau de relação direta com a história. Assim, eles desempenhariam papéis, como os de “testemunhas oculares”, “suspeitos”, “advogados de defesa”, “promotores”. Quase todos são diretamente vinculados à história, embora em alguns casos isso não esteja explícito no filme. Muito poucos são, digamos, os “especialistas”, que nos ajudam a fechar a narrativa.
Nas filmagens, a gente também ficou muito atento a esse olhar policial. O que, igualmente, não foi difícil. A gente começou a filmar duas semanas antes do início da Copa e continuou durante mais duas semanas depois. Então havia toda aquela tensão no Centro – policiais por todos os lados, guarda montada, viaturas. Houve até um momento em que filmávamos com uma teleobjetiva da cobertura de um edifício na Cinelândia, e um helicóptero ficou nos rondando por uns dez minutos, até, eu suponho, eles entenderem que era uma câmera – esse plano acabou caindo na montagem. Além disso, há esses tantos espaços vazios ou inóspitos – praças, estacionamentos -, filmados em plano fixo como prova judicial, ou em steady catn suave com o suspense de cena do crime.
Quando cheguei para montar o filme com a Eva Randolph, tinha uma noção bastante boa do que eu buscava, mas não havia um roteiro propriamente. A rigor, o que nos orientou foi uma linha do tempo do Palácio Monroe, com essa ideia de que a história seria contada cronologicamente – como, de fato, acabou ficando. E eu tinha já essas músicas do Philip Glass escolhidas para a trilha, o que foi importante para construir o ritmo visual e a atmosfera do filme.
Eu fiz junto com a Eva o visionamento e a seleção do material filmado. É uma etapa bastante cansativa, porque você tem que rever tudo o que você filmou, e dura algumas semanas. Mas não me imagino dirigir um documentário sem participar dessa etapa. Ou mesmo uma ficção. Mas num documentário me parece ainda mais crucial. Porque mesmo que você tenha um roteiro bastante fechado, o documentário é sempre mais aberto. Então esse é o momento em que você vê e discute o que você mesmo fez com alguém que não participou daquele processo todo – e é essa pessoa que dará a forma final para sua história.
Terminada essa etapa, a Eva sugeriu – e eu concordei – fazer o primeiro corte sem a minha participação, porque assim ela poderia se defrontar sozinha com o material, sem o meu olhar. E dar o seu entendimento daquela história, a partir do que o próprio material e as nossas conversas lhe suscitavam. A rigor, a estrutura geral do filme foi essa que ela construiu no primeiro corte – inclusive o início e o fim e algumas das soluções mais ousadas de montagem, como a sequência dos estacionamentos com a enumeração de prédios demolidos nos anos 1960-1970. Foi um processo bem longo de montagem, quase um ano (com diversas pausas, claro), porque havia muitas tramas paralelas e o enorme desafio de concatená-las. Além das questões propriamente formais.
A gente trabalhou com três tipos de material: fotos e filmes de arquivo, imagens atuais (da cidade ou de elementos do Palácio) e entrevistas. As entrevistas são o que guia o filme, narrativamente, mas é um material um tanto quanto redundante – imagem e som dizem praticamente a mesma coisa num filme como este. Então a gente optou por manter a maior parte das entrevistas em ojf, de modo a expandir a percepção e os significados, lançando mão de outras imagens. Mas sem ignorar esse potencial reiterativo de ter as entrevistas em on, para sublinhar determinados trechos dos depoimentos e também reforçar as personalidades dos personagens. Quanto ao uso dessas outras imagens, aí residiu outro dos grandes desafios da montagem. Por um lado, como filme policial, a gente teria que apresentar as evidências citadas. Por outro, essa abordagem ilustrativa sempre nos pareceu empobrecedora. A gente acabou trabalhando, então, nesse limite. Há sequências, como a inicial, em que a imagem não guarda relação direta com o que está sendo dito. Há outras, como a dos “pontos de venda”, em que há apenas alguns planos em sincronismo direto com a fala. E há também aquelas como a já mencionada sequência dos estacionamentos, em que a ligação é meramente conceituai – mas as pessoas começam achando que são imagens ilustrativas, para depois perceberem que são coisas distintas.
O que nos pareceu mais importante foi sempre instigar o olhar. Se adotássemos um padrão, seja ele sempre ilustrativo ou sempre dissonante, o filme acabaria enfadonho. O que estimula a nossa atenção é eventualmente perceber um plano que é claramente ilustrativo (fala-se “Theatro Municipal”, mostra-se o mesmo) e, no plano seguinte, já não é ilustrativo, e mesmo assim a gente formula uma relação com o que está sendo dito. E instigar esse olhar não só com relação ao filme – mas com relação à cidade mesmo. Ao longo do filme, a gente retorna a ver a praça Mahatma Gandhi vazia, por diversas vezes. E a cada vez nosso olhar se depura, percebemos diferentemente esse mesmo espaço. É a mesma praça ao longo de toda a duração. E, a rigor, filmada de formas não tão diferentes assim. O que muda não é essa imagem ou o espaço, é a relação que estabelecemos com essa imagem e com esse espaço, pela sobreposição de significados.
É como diz o Ítalo Campofiorito no filme: “A cidade é como a cultura, de natureza cumulativa”. A gente não pode lançar para a cidade um olhar ingênuo: esse bairro, essa rua, essa praça, são assim porque são assim. Cada espaço é resultado de um processo histórico. E quando a gente lança o olhar para, digamos, no caso de Crônica da demolição, uma praça onde antes havia um palácio, a gente acaba revelando um aspecto muito importante de nossa sociedade, que é a violência motivada pela cobiça.