O choro, de 1936, é um livro mítico na bibliografia musical brasileira. Foi escrito por um carteiro, Alexandre Gonçalves Pinto, que se dedicou a traçar um panorama do gênero em seus primórdios, esmerando-se em mapear os músicos da época, tanto os bons quantos os “facões”, como eram chamados os ruins. Embora a edição original tivesse problemas tipográficos e de português, o trabalho pioneiro do Animal (apelido de Gonçalves Pinto) foi fundamental para os músicos e estudiosos das décadas seguintes.
Pedro Aragão reúne os dois em um: é exímio bandolinista e maestro respeitado, além de pesquisador da história do choro. Sua tese de doutorado pela UNI-Rio, O baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O choro, está saindo agora em livro pela editora Folha Seca. Nesta entrevista por e-mail, Aragão conta como a estranheza inicial que a obra lhe provocou foi substituída por um fascínio pelas descrições das rodas e festas e pelo reconhecimento da importância de um trabalho que não se resumiu a tratar dos nomes consagrados.
1 – Como você pode resumir quem foi essa figura singular, Alexandre Gonçalves Pinto?
São vários os fatores que fazem de Alexandre Gonçalves Pinto uma figura ímpar na história da música popular. Ao contrário de outros nomes que escreveram sobre a música do Rio de Janeiro na década de 1930 -, figuras de destaque como o jornalista Francisco Vagalume e intelectuais como Orestes Barbosa – Gonçalves Pinto era um ilustre desconhecido quando publicou seu livro O choro: reminiscências dos chorões antigos em 1936.
Carteiro aposentado, tocador de violão e cavaquinho, íntimo de todas as rodas de choro da cidade desde “1870 para cá”, Gonçalves Pinto decididamente não era um escritor, mas um homem comum que escreveu o seu livro “como que impulsionado por uma missão”: perpetuar a memória de centenas de instrumentistas populares à margem da história, que no período da belle époque carioca criaram o choro, gênero de música popular urbana dos mais antigos do país.
Dessa forma, seu livro é um passeio pela história do Rio e a história desses instrumentistas. A maior parte deles tinha profissões modestas – carteiros, operários, lustradores de móveis, charuteiros – e são identificados apenas pelos apelidos – Benigno Lustrador, Leopoldo Pé de Mesa, Josino Facão, entre outros. Mas gozavam de grande popularidade em festas populares no início do século XX, em um período em que o rádio não existia e o disco era uma diversão apenas para os mais ricos. Normalmente tocavam em troca de comida e bebida, conforme se deduz das descrições verdadeiramente pantagruélicas de banquetes ao longo do livro. O próprio Alexandre Gonçalves Pinto (por alcunha “o Animal”) é descrito como um “grande general no comer e no beber”.
2 – Você escreve que sua primeira impressão lendo O choro, em 1998, foi de estranhamento. Como foi se envolvendo com o livro e constatando sua importância?
A edição que eu li foi a da Funarte, que reproduz em fac-símile a edição original de 1936. A primeira leitura causou estranhamento por dois fatores principais: o livro foi impresso muito provavelmente em uma tipografia de fundo de quintal – provavelmente usada para imprimir cartelas de jogo do bicho -, com mil erros tipográficos. Além disso, a escrita do carteiro não segue a norma culta: é repleta de erros gramaticais e carregada de gírias e linguagens populares da época, que nem sempre fazem sentido para o leitor atual. Mas essa impressão inicial é logo substituída pelas saborosas descrições de centenas de “personagens” do Rio da belle époque. A partir destas descrições, fui “mergulhando” cada vez mais na obra e me deparando com alguns aspectos que me parecem únicos.
Em primeiro lugar, ao contrário de todas as obras sobre músicas do mundo, que normalmente salientam apenas os grandes compositores e intérpretes, esse talvez seja o primeiro livro em que se descrevem, sem distinções, tanto os maiores expoentes da época – Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros – quanto os piores! Vários são os instrumentistas descritos como “facões” (que na gíria da época designava os músicos fracos), mas que por uma razão ou por outra eram importantes para a comunidade dos chorões. Esse enfoque me fascinou, porque é como se o carteiro deixasse muito claro que a música é no final das contas uma construção coletiva, e que todos aqueles carteiros, operários, charuteiros – muitos dos quais tinham instrumentos precários, constantemente remendados – tinham igual importância na construção do choro.
Em segundo lugar, me parece igualmente fascinante o fato de que em uma época em que o samba se consagra como a grande música nacional – celebrado em 1933 pelos livros de dois grandes vultos como Orestes Barbosa (autor de O samba) e Francisco Vagalume (Na roda de samba) – um obscuro carteiro saísse em defesa de diversas outras práticas musicais (polcas, schottischs, valsas, quadrilhas, maxixes, tangos brasileiros, todos reunidos no termo “choro”) que seriam tão importantes quanto o samba para uma parcela significativa da população. Finalmente, o livro mostra como vários desses instrumentistas populares sabiam ler e escrever partituras, formando e trocando acervos manuscritos, o que é algo que não é associado imediatamente à música popular.
3 – Como um livro de 1936, cheio de estranhezas, ainda ajuda a entender o choro hoje?
O livro ajuda a entender o choro da atualidade em muitos aspectos: tal como no passado, é uma música que ainda está ligada a uma coletividade, à ideia de “roda” e de “festa”. Mesmo com a profissionalização dos músicos de choro – algo que se inicia na década de 1930 -, penso que esta música ainda carrega em si muitos destes elementos de farra e de alegria característicos da belle époque carioca. Por outro lado, o livro também nos mostra o quanto o choro nasce de uma confluência entre as danças de salão que nos vêm da Europa e as músicas “da rua” e o quanto, ao contrário do que se poderia esperar, estas duas instâncias já estavam misturadas desde o início do século XX. Minha pesquisa revelou que era relativamente comum encontrarmos acervos manuscritos de partituras escritas por carteiros e operários, por exemplo. Creio que essa mistura de elementos permanece e dá força ao choro de hoje.
4 – A julgar pelos relatos de Gonçalves Pinto, o choro, em seus primórdios, transitava com facilidade pelas diferentes regiões do Rio e classes sociais.
As descrições de Gonçalves Pinto mostram que havia rodas de choro tanto em regiões “nobres” quanto nas mais afastadas da cidade. Era possível encontrar rodas tanto na casa do Visconde de Ouro Preto e de Mello Morais Filho – respectivamente, um político e um intelectual dos mais importantes do Império – quanto nas casas dos subúrbios mais afastados. Um fichamento dos bairros citados mostra que o “circuito” dos chorões ia desde a zona oeste – Jacarepaguá e adjacências – passando pelos palacetes de Botafogo e Gávea até toda a zona norte e subúrbios, sem esquecer a ilha de Paquetá. Penso que a facilidade de adaptação dessa música aos mais diferentes contextos é outro dos fatores que permanece até hoje.