Ressaca semiótica

Correspondência

03.09.13

Leia a carta anterior.

O psicólogo e linguista canadense Steven Pinker

O psicólogo e linguista canadense Steven Pinker

Olá, Fausto!

São tantos giros, estou um pouco tonta de ressaca semiótica, cheia de interrogações internas e não me ocorre nenhuma metáfora machadiana para começar – ou terminar – nossa rodada dialética; a tentativa ambiciosa de analisar esse parque de diversões desgovernado que é a realidade sem que desçamos do carrossel. E vamos girando… a paisagem corre alucinada antes que eu consiga registrar e processar. Ao final de cada volta a cena se repete em um lampejo, mas está tudo diferente e eu perdi o vínculo causal. Percebo que o mundo gira alguns hertz acima da minha capacidade de processamento, minha CPU errática e cambaleante. Fico à deriva e não é à toa que me sinto meio autista. Nós escritores fingimos muito bem que entendemos a realidade, e ela não deixa de ser parente da ficção. Contamos histórias para dizer um monte de mentiras enquanto falamos outro tanto de verdades…

O que tentamos fazer nesta troca de cartas? Começamos da nota de rodapé de uma agitação passageira e evoluímos para a especulação cósmica de tudo o mais, seguindo esse impulso natural de ir do micro ao macro; buscamos correlações entre o trivial e o universal, o que não deixa de ser uma forma de buscar sentido em todas as coisas – ou denunciar a falta de sentido, ou ainda, ironizar a própria busca por significados. Da minha parte, não por desdenhar da busca, mas porque concordo com você quando disse que existe beleza no caos. A vista é bonita aqui do carrossel, de onde vejo tudo e não entendo nada.

E eu me pergunto: chegamos a alguma conclusão? Já roí as unhas até a carne ponderando como extrair uma conclusão do vórtice de pensamentos e devaneios desta série de correspondências, porque, de todas as linhas de tendência que traçamos, tudo o que vejo adiante é um emaranhado de estradas, a conduzir, através da névoa e poeira, a outros paraísos fantasmagóricos; outras utopias, distopias… e o final deve ser uma não topia. Passamos pela idade do bronze, do ferro, do aço, das trevas, das luzes, do petróleo, do silício… e nunca perdemos de vista a Idade do Ouro: a ideia platônica de paraíso terrestre. A mesma ideia que guia nossas melhores intenções como seres humanos.

Seres miméticos, do modo como você descreveu. Somos inventivos, engenhosos falsificadores em nosso amadorismo recriante. Peritos em gambiarras.

Você me perguntou: será que aguentaríamos viver conectados por telepatia, entre pensamentos e emoções alheios e tumultuados? Talvez a era da telepatia tenha começado na semana passada. Soube que uma equipe de cientistas operou a primeira conexão cerebral entre duas pessoas, via internet, mapeando o cérebro de um por ressonância e transferindo informação para o outro por meio de estimulação magnética transcraniana. Por enquanto serviu para uma pessoa mexer o dedinho da outra, mas daqui a algum tempo, quem sabe, uma gambiarra talâmica nos faça mergulhar no oceano palpitante de terrores e prazeres de uma mente humana mais primitiva, e ao mesmo tempo alienígena, dessa criatura temível: o outro. Nenhum safári deve ter sido tão perigoso.

Ainda no meu giro por notícias da semana, há mais uma que eu gostaria de comentar. Astrônomos brasileiros descobriram uma estrela idêntica ao nosso Sol, só que mais velha. Estudá-la poderá nos mostrar como será a evolução do nosso próprio sol. O que sabemos, por enquanto, é que ele irá se aquecer, empurrar a zona habitável para além de nossa órbita, e depois, num surto de inflação vermelha, devorar o que restou do nosso planeta. Daqui bilhões de anos, obviamente. Na prática, não muda nada, só reforça o memento mori em escala macrocósmica. Não temos nenhum plano de fuga. Não existe saída de emergência da Terra. Aqui estamos encurralados, como o tratador preso na jaula dos leões, desfrutando a companhia uns dos outros (ou o inferno mútuo, Sartre diria). Por isso eu quis citar a não topia como última etapa da civilização – um tempo em que não há mais futuro possível a se almejar.

Feras humanas – seremos isso mesmo? Estive dando uma olhada em um livro do Steven Pinker, The better angels of our nature, no qual ele propõe que a história humana pode também ser recontada como a história da contenção da violência. Definiu seis períodos dessa história: processo de pacificação (da anarquia tribal às primeiras civilizações), processo civilizatório (da Idade Média até a Moderna, quando houve grande declínio em homicídios), revolução humanitária (Idade da Razão, com a abolição da escravatura), longa paz (durante a Guerra Fria, momento de poucos conflitos diretos), nova paz (pós-Guerra Fria, redução das guerras civis e genocídios) e revolução dos direitos (dos anos 1950 até a atualidade, com as conquistas dos direitos das minorias e uma crescente repulsa coletiva aos preconceitos e à discriminação). O argumento do Pinker é que o declínio da violência é resultado de mudanças biológicas e cognitivas que levaram à sofisticação do nosso senso moral, e que, apesar de não termos garantias que essa paz será definitiva, vivemos o período mais pacífico da história da humanidade. Pode ser difícil para paulistanos e cariocas acreditarem nesse diagnóstico, enfiados que estamos no vale-tudo das nossas metrópoles, mas creio que a afirmação dele se fundamenta, de algum modo, no distanciamento acadêmico que coloca tudo em perspectiva para demonstrar que… veja só, evoluímos!

Isso significa que podemos até nos arriscar a sermos um pouco otimistas. Antes que este parque de diversões se incendeie, antes que vivamos em rede telepática, antes que as máquinas ganhem consciência e assumam o controle, antes que a Terra seque e o Sol a devore, talvez empreendamos mais um passo em direção àquela Idade do Ouro inalcançável, quando, movidos por um senso mais amplo de alteridade, seremos um pouco menos o inferno alheio.

Além do grande SERÁ que aqui deixo, com todas as perguntas não respondidas e irrespondíveis, minha conclusão para uma síntese da nossa troca de correspondências, Fausto, é o canal aberto pela troca do conteúdo das nossas tempestades sinápticas. O movimento de ideias em via dupla. Alteridade. E os desdobramentos futuros desta conexão. Por exemplo, aquele livro que vamos escrever. Vamos?

Foi um grande prazer trocar estas correspondências com você, Fausto. Obrigada por me convidar!

Nos vemos por aí, ou por aqui. Nos vemos.

Grande beijo,

Cristina Lasaitis

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