O sentimento que Holy Motors provoca em quem ama o cinema é nada menos do que júbilo. Tenho amigos que, em uma semana, já viram o filme três vezes. Não é para menos.
Numa arte que tem sido tão amesquinhada e banalizada, é revigorante ver uma aposta radical assim nos poderes libertários da invenção e da fantasia.
Não por acaso, uma das três pessoas a quem o filme de Leos Carax é dedicado é Georges Franju (1912-87), um dos fundadores da Cinemateca Francesa e expoente do cinema fantástico de raiz surrealista. A atriz Edith Scob, que em Holy Motors encarna a motorista do protagonista, atuou em diversos filmes de Franju, entre eles La tête contre les murs e Olhos sem rosto. Aqui, o insólito trailer deste último, que trata também de identidades forjadas e que serviu igualmente de inspiração para Almodóvar em A pele que habito.
De que trata Holy Motors? Um homem (Denis Lavant, ator de quase todos os filmes de Carax) atravessa Paris numa limusine que, por dentro, é um camarim no qual ele se transforma nos mais diferentes personagens e passa a interagir com o “mundo real”, numa espécie de radicalização ad absurdum do “teatro invisível” de Augusto Boal. Numa cena, ele é um magnata dos investimentos; em outra, uma velha mendiga; em outra ainda, um atleta que simula movimentos de luta para a produção de um videogame. Há um certo respeito à verossimilhança até o momento em que o personagem, transformado em M. Merde, um ogro urbano, rapta uma top model (Eva Mendes) durante uma sessão de fotos num cemitério. Em outro episódio esse personagem cambiante mata um homem que é um duplo dele próprio.
http://www.youtube.com/watch?v=dJWKe5xgax0
Estamos, em suma, na Paris real, do mundo fashion e dos mendigos, do turismo e dos grandes magazines falidos, mas também em outro terreno, o da liberdade de imaginação, que transfigura os espaços, os tempos e as identidades. Estamos no cinema, em suma.
O abjeto e o sublime
Denis Lavant e Eva Mendes em cena do filme
Cabem aqui dois comentários à parte. Primeiro: em sequências como a do ogro e da modelo (a bela e a fera revisitados), Carax leva ao extremo o gosto pela aproximação drástica entre o abjeto e o sublime, a violência e a ternura, que os cinéfilos já conheciam pelo menos desde Sangue ruim e Os amantes do Pont-Neuf.
Segundo: é irônico e curioso que dois dos mais marcantes filmes do ano – Cosmópolis e Holy Motors – sejam odisseias de personagens em limusines, cruzando ao longo de um dia metrópoles icônicas da modernidade (Nova York e Paris). Mas, se a estrutura é similar, o estilo e o espírito são completamente diferentes. O filme de Cronenberg é, de certo modo, um réquiem, ao encenar a liquidação do afeto, do desejo e da liberdade pelo grande capital sem pátria e sem rosto. Já Holy Motors, apesar de lidar em vários episódios com a morte (assassinatos, suicídios, mortes naturais), tem o tom geral de uma celebração. No mínimo, de uma celebração da faculdade do cinema – e da arte em geral – de potencializar a imaginação, atiçar a inteligência, ampliar a sensibilidade. Uma crença cega nos poderes da ficção, que permite a um indivíduo viver várias vidas no espaço de um dia.
É impressionante a fluidez e a segurança com que Carax transita entre os gêneros, conduzindo o espectador do policial à comédia de humor negro, do drama psicológico ao musical. A sequência em que a personagem de Kylie Minogue, uma “camaleoa” profissional como o protagonista, começa a cantar no cenário em ruínas da Samaritaine abandonada vale por um manifesto poético-político.
Em Cosmópolis, o protagonista se pergunta a certa altura para onde vão todas aquelas limusines à noite, quando acaba sua jornada. Holy Motors é, no filme de Carax, esse lugar, um pátio imenso onde repousam – e conversam entre si – esses carros maravilhosos. Mas podemos ler de outra maneira o título anglófono do filme. Motores sagrados são o automóvel, o cinematógrafo… e a imaginação humana.