O detetive de si mesmo

serrote

13.09.11

Não há santo nem Jonathan Franzen que me façam acreditar, com sinceridade, no lugar, hoje, de enormes narrativas que atravessam décadas e mobilizam uma lista telefônica de personagens. Ok, a imaginação desenfreada de Roberto Bolaño faz toda a diferença a favor do catatau Os Detetives Selvagens, mas continuo achando que concisão é, sim, importante virtude literária. O que um livro como The Sense of an Ending só me faz confirmar.

Favorita para o Booker Prize deste ano, a novela de Julian Barnes é extraordinária – e não apenas, é claro, por causa das idiossincrasias deste blogueiro. Em suas 150 páginas (em formato quase de bolso na edição da Jonathan Cape), é um prodígio de técnica mas, sobretudo, de um raro equilíbrio entre virtuosismo narrativo e uma brutal e destemida dose de emoção – devidamente trabalhada mas, definitivamente, nada cool.

Lê-se The Sense of an Ending de uma só vez, mas volta-se muito atrás. Talvez porque escrutinar o passado é o que move Tony Webster, o narrador. Na primeira parte, ele é pura possibilidade na Inglaterra ingênua dos anos 1960. Com Colin e Alex, Tony forma uma sólida confraria que, não sem relutância, acaba por receber um quarto elemento, Adrian Finn. Todos são vagamente intelectuais, leem poesia e filosofia, usam os relógios com o mostrador para baixo numa indicação e distinção. Mas Adrian é verdadeiramente brilhante.

Naquela época, a luta entre eros e tanatos ombreia-se com a virgindade como questão transcendental para os garotos. Tony não é lá muito jeitoso com mulheres e, depois de um longo e decisivo relacionamento com Veronica, garota cheia de opiniões e reservas, herda a sensação de um disfarçado fracasso emocional, intelectual  e sexual. A descrição de um fim de semana que passa com os pais e o irmão da namorada é tremenda –  e ecoa por todo o livro.

Na segunda parte, passaram-se mais de quarenta anos. Sessentão na Londres de hoje, Tony vive sozinho depois de um breve casamento que lhe deu uma filha. É amigo da ex-mulher e da filha, perdeu contato com os amigos fundamentais, tem prazer em viver organizadamente sua aposentadoria como funcionário de instituição cultural ou coisa que o valha. Do passado remoto e formador, guarda o trauma do suicídio de Adrian, que via como uma demonstração torta de sua superioridade intelectual, e a decisão, levada a cabo com aparente sucesso, de apagar Veronica de sua história.

Este homem pacificado recebe, no entanto, uma modesta e insólita herança. A ele é legado, pela mãe de Veronica, cuja lembrança é tão distante quanto a da filha, 500 libras e um diário. Não o dela, mas o de Adrian. Ficamos sabendo (o narrador já sabia, claro) que, ao se suicidar, o amigo era o namorado de Veronica.

O que se desencadeia daí não posso contar, pois não sou estraga-prazeres ou alcaguete de escritor. Mas posso, sim, assegurar que as consequencias desse truque aparentemente banal – o da carta que provoca reviravolta em uma trama – não é, aqui, nada previsível. Pois no que Barnes vai fundo é nas pequenas, ínfimas traições da memória. E nos grandes estragos que elas podem desencadear.

Por sugestão biográfica direta, um livro batizado O sentido de um final pode remeter à recente viuvez de Barnes, que depois da morte de Pat Kavanagh, a quem o livro era dedicado e que também era sua agente literária, publicou um ensaio explícito sobre o tema (Nada a Temer) e um livro de contos infiltrado pela perda (Pulse, este ainda inédito no Brasil). Mas o título repete o de um ensaio de Frank Kermode, o importante scholar inglês, autor de A Linguagem de Shakespeare, morto ano passado. Não li nem ouvira falar até hoje sobre The Sense of an Ending, o ensaio, publicado em 1967 – e editado em Portugal como A Sensibilidade Apocalíptica.

Aprendo que, no livro, Kermode demonstra o que as narrativas do apocalipse têm em comum com a estrutura da ficção. Ao propor um fim, um padrão para o tempo, as narrativas apocalípticas sugerem um início e um meio bem definidos, e assim organizam o tempo. Mas o evidente fracasso de sua previsão, ou seja, o fato de que mundo efetivamente não acabou, faz com que a narrativa que se queria linear sofra mudanças, às vezes bruscas e inesperadas. E não é outra coisa o que faz o narrador de Barnes, que a caminho da velhice se crê também próximo do ponto final de sua narrativa.

Desde sempre Julian Barnes namorou o ensaísmo, ainda que de forma livre e pouquíssimo esquemática – o que faz com virtuosismo em O Papagaio de Flaubert. Nesse caminho, The Sense of an Ending é ainda mais sofisticado, já que dilui todas as referências numa trama quase policial – e também trágica, no sentido literal – do homem que é detetive de si mesmo.

Há aproximações entre este Julian Barnes e o Na praia de seu contemporâneo Ian McEwan: a vida inglesa moralista em plena década de 60, o amor malogrado pelo tempo, a revisão que faz pensar em arrependimentos e ressentimentos. Mas o que Tony Webster rumina é o peso insuportável do remorso. E, o que é pior, a percepção de que foi enganado por sua própria consciência.

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