À maneira de Braga: Queria escrever, por Vanessa Barbara

Literatura

16.06.11

O Instituto Moreira Salles acaba de lançar uma nova edição dos seus Cadernos de Literatura Brasileira. O número 26 da série, iniciada em 1996, é dedicado a Rubem Braga, o maior criador da moderna crônica brasileira. Em meio às homenagens prestadas pelo IMS ao cronista, o blog do IMS convidou os escritores Vanessa Barbara, Antonio Prata, Chico Mattoso e Cecília Giannetti para criar um texto à maneira de Rubem Braga.

Abaixo, segue a colaboração de Vanessa Barbara. 

Queria escrever

Queria escrever um texto bonito, algo que a moça das verduras pudesse levar consigo no ônibus após um dia sem couves, e que ela fosse reler de mansinho e recortar para as amigas. Um texto sereno, bonito pra burro, que fizesse marejar os olhos de um velho coronel, por um momento arrependido de nunca ter sido jovem e nem trapezista – e de ter dispensado sua primeira namorada, só porque era hippie e não tinha todos os dentes.

Que seja tão inesperado e forte quanto um soluço, que faça despertar as tartarugas e sorrir os banguelas. Que o porteiro, quando ler, pense no seu jardim esquecido, em seus netos adultos e em uma vida só de reprises do Pica-Pau.

Um texto bonito para um determinado pombo, que, atrapalhado, se enroscou num fio de eletricidade e não saiu mais de lá. Isso foi num cruzamento de avenida; o pombo fez que ia conseguir escapar e não escapou, atraindo em minutos uma turba de curiosos, guardas de trânsito, senhoras palpiteiras, vendedores de mata-moscas. Quando fecharam o trânsito para socorrer a ave, um jovem policial militar ergueu a escada do caminhão de bombeiros, repassou o plano e foi cumprir o seu dever cívico; uma senhora ao meu lado exclamou, plena de gravidade histórica: “Olha só, fiquei toda arrepiada”.

Um texto para esse pombo, resgatado do fio de luz sob os aplausos do povo, ainda trêmulo e um pouco tímido, um pombo que possivelmente não terá maior momento de glória nessa sua vida emplumada. Um texto para os que estavam assistindo a tudo e entenderam, na hora, que havia quem passasse a vida inteira em busca de um momento como este, em que um pombo nervoso sai carregado pelos braços do povo, tendo mobilizado dois batalhões da PM e um destacamento especial do Corpo de Bombeiros. E havia gente nos beirais das lojas e nos meios-fios, e os funcionários do metrô dando uma pausa no trabalho, e alguém rezando em voz baixa.

Um texto bonito para a minha rua, para os meus amigos, para o cobrador do 1744 e para todos aqueles que dormem cedo demais. Algo bem tolo, desnecessário, que lembre poemas rimados, que agrade o vizinho cansado, o professor de astronomia, as verdureiras, os militares e os pombos que se enroscam em fios de luz.

Um texto bonito, mas tão bonito que você não possa deixar de lê-lo, ainda que, numa noite fria, ele precise se revelar misticamente numa sopa de letrinhas, todo arranjado em estrofes e ervilhas de pontuação, e você pense nele como pensa em gorrinhos. Um texto tão bonito que o faça botar uma roupa estranha, vestir o chapéu e se sentir instantaneamente aquecido, saindo à rua com a determinação trêmula de um pombo.

Um texto tão bonito que o faça voltar pra casa, meu amor, sob o triste cochilo da lua. 

 

* Vanessa Barbara nasceu em 1982, em São Paulo. É jornalista, tradutora e editora do blog A Hortaliça. É autora de O livro amarelo do terminal (Prêmio Jabuti 2009 na categoria Reportagem), O verão do Chibo, em parceria com Emilio Fraia.

* Na imagem da home que ilustra este post: a escritora em foto de Nino Andrés (divulgação da editora Cosac Naify). 

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