Um dia, há quase dez anos, quando terminei de entrevistar Rose Marie Muraro, fiz questão de, encerrada a tarefa, agradecê-la. Devo ter dito uma frase meio piegas, a única que me ocorreu na hora, mais ou menos assim: “Muito obrigada. Sem a sua luta, a minha geração não teria chegado onde chegou”. Ela se surpreendeu tanto que, mesmo mas já doente, iluminou o rosto com um sorriso generoso. Fui embora daquele pequeno apartamento no Bairro Peixoto, em Copacabana, pensando como cada geração de mulheres chegava à idade adulta tomando como natural o que, na verdade, havia sido duramente conquistado pelas gerações anteriores.
Ela acabara de me contar, ainda com mágoas, sobre as centenas de vezes que foi chamada de bruxa, mal-amada, feia, prostituta, e como toda a violência havia afetado a sua vida e a dos cinco filhos. Rose caminhava muito lentamente, resultado da doença, mas também como se ainda carregasse no corpo o peso do seu pioneirismo. Em 1972, trouxe Betty Friedan — a feminista norte-americana de quem prefaciaria o clássico “A mística feminina” —, e com ela enfrentaria um batalhão de jornalistas do Pasquim, cujo repúdio ao feminismo foi escancarado numa entrevista que entrou para a história do preconceito da esquerda contra a emancipação da mulher. Em nome de uma luta universal — esta sim, digna da atenção masculina — a desqualificação da bandeira feminista se dava primeiro no que seria o campo progressista.
Embora os bravos companheiros fossem críticos do autoritarismo e da moralidade burguesa, voltaram suas baterias contra mulheres que iniciavam uma dura briga contra os estereótipos de gênero. Nessa conversa, por exemplo, o genial Millôr Fernandes se orgulhou de ser considerado “porco chauvinista”, já que a denominação partia da própria Betty Friedan em pessoa, “e ela em pessoa é muito mal apessoada”. Recorrer aos atributos físicos das mulheres como forma de desqualificação tem sido uma estratégia machista até hoje e pode ser ouvido em qualquer esquina quando alguém comenta as roupas ou o cabelo da presidente da República.
Não é demais lembrar que a autora de A mística feminina, lançado nos anos 1960 nos EUA e publicado por Rose pela editora Vozes em 1971, já era um grande expoente do feminismo quando chegou aqui para repetir ideias que hoje são óbvias: ter marido e filhos não é tudo na vida de uma mulher. A visita da ilustre norte-americana ajudou a impulsionar a nova onda feminista da qual Rose foi pioneira. Em 1975, um grupo de mulheres reuniu-se na ABI, no Rio de Janeiro, para debater questões de gênero e fundar a primeira organização feminista brasileira — o Centro da Mulher Brasileira (CMB) —, do qual ela foi uma das fundadoras. Dez anos depois, o governo criaria o Conselho Nacional da Mulher, primeira iniciativa de levar para o Estado o debate sobre políticas públicas específicas das mulheres. Rose fez parte do conselho desde a sua criação até 2012, quando a doença já a impedia de se locomover. Sua história de militante, no entanto, começara muitos anos antes, em 1946, quando ingressou na Ação Católica ao lado de Dom Hélder Câmara, e passou pela criação da Teologia da Libertação, ao lado de Leonardo Boff.
Depois de agradecer a Rose naquela tarde em Copacabana, inúmeros livros da Rosa dos Tempos — selo da editora Record que ela dirigiu por muitos anos, responsável pela tradução de importantes textos feministas como não se vê mais atualmente — me caíram nas mãos e eu mentalmente agradecia de novo a ela pela leitura, pensando como uma mulher que era praticamente cega foi tão importante no mercado editorial brasileiro, dedicando a vida a ler, escrever e publicar. Em 1983, seu A sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil encabeçou por seis meses a lista dos mais vendidos, dando a impressão de que Rose era onipresente. Revistas femininas, emissoras de rádio e TV, jornais, todos queriam entender melhor outra descoberta que hoje parece óbvia: mulheres pobres e trabalhadoras sofrem muito mais a discriminação sobre o corpo e a sexualidade. A partir daí, pode-se começar a articular a luta específica das mulheres com a luta geral contra a opressão. Enfim, podemos reconhecer que somos todos/as proletários/as.
Agradecer a Rose é uma forma de retomar um problema que me parece ainda não resolvido em relação às feministas da geração dela. Hoje, para as meninas que vão para a universidade, para o mercado de trabalho, usufruem de todos os direitos de uma vida emancipada, recusam a maternidade como destino, tudo parece muito natural. Para mim também, quando votei pela primeira vez, não me passou pela cabeça agradecer às sufragistas dos anos 1930 no Brasil que, inspiradas pelos movimentos internacionais de reivindicação do direito ao voto feminino, tinham me garantido o direito de estar ali.
A naturalização é uma conquista política, porque significa que foram desaparecendo da cultura as marcas mais fortes de discriminação e preconceito. No entanto, a naturalização tem um grande inimigo: o apagamento da memória. Não se trata, aqui, de uma mera política de reparação do passado, como se pudéssemos nos mover em direção a um fim da história reverso — para usar a feliz expressão de Paulo Arantes no seu livro mais recente, O novo tempo do mundo — e apagar todos os conflitos que nos marcaram, em busca de um apaziguamento impossível. Trata-se sim de uma política da memória afirmativa, capaz de relacionar conquistas do presente com as lutas do passado.
Se ainda hoje, contra o termo feminista pesam muitos preconceitos, quando Rose e sua turma começaram a falar em emancipação da mulher colheram ridicularização, violência, preconceito. Manter a história viva é honrar a memória da Rose e de tantas outras que já se foram, ressignificando e atualizando a cada geração as lutas feministas, ainda tão necessárias. Muito obrigada, Rose.