Fotografia de Daniela Nader
“O mundo se divide entre os que concordam comigo e os equivocados”, costumava dizer Ariano Suassuna, meio de brincadeira, meio a sério. A frase era a cara dele, sempre generoso e autoritário, acolhedor e duro em cada conversa, em cada gesto, em cada palestra. Era um personagem de si mesmo, consciente disso e, por isso, jamais caricato. O homem Ariano Suassuna, que se emocionava ao lembrar o pai e emocionava quando falava de teatro, criou o escritor Ariano Suassuna, nacionalista radical e defensor intransigente do que via como a cultura popular autêntica. Juntos, militavam nas fileiras do exército, hoje brancaleônico, dos que não suportavam a cretinice do mundo.
Há dez anos, coordenando a reforma editorial da Agir, posteriormente redemolida, viajei ao Recife para encontrá-lo. Auto da Compadecida era uma das joias da coroa do antigo catálogo da editora e deveria ser mantido. No acordo a que chegamos, faríamos uma edição convencional e outra de luxo. Tenso, cheguei à belíssima casa dele no início da tarde e fui recebido pelo personagem Ariano, calça e paletó de linho branco e sandálias.
Eu me apresentei, ele me ouviu calado de uma cadeira imponente e, com sua proverbial objetividade, mandou: “Eu não quero saber desse negócio de luxo, não. Se o sujeito pode pagar mais barato, por que vai pagar mais caro?”
Estava e não estava sendo sincero. Achava, de fato, ruim o preço alto, inevitável, mas também investigava se tudo seria de seu jeito, se não iríamos impor padrões alheios a seu estrito cânone estético. Felizmente, eu já estava armado de muita informação e garanti que o livro seria, como de fato foi, como ele pensava. Aí entra o homem, generoso, e estende um espiral que eu não esperava: era uma cópia xerox do Auto totalmente revisada, com muitos cortes e alguns acréscimos, mexido pela primeira vez desde que havia sido publicado, em 1957. E foi impossível não se comover com aquele homem absolutamente genial explicando algumas mudanças, sempre veemente.
Quando a editora foi relançada, convidei-o a uma festa no Rio, achando improvável que viesse. Mas ele aceitou o convite, extensivo, é claro, à sua família adorável, em que se destacava “Alexandre meu genro” – assim ele se referia a Alexandre Nóbrega, que cuidava de sua agenda, e assim passei a brincar com ele, Alexandre. Tramamos tudo para que ele se sentisse bem, tocamos música armorial em sua chegada, e ele, em trajes de gala (terno preto e camisa vermelha), discursou com sua perfeita noção de palco (eu ia digitar timing, mas esta era a pior homenagem que poderia fazer a ele) e se mandou quando começou a festa pra valer: “Vou embora que essa música é coisa de maluco!”.
Um ano depois, livros lançados, nos reencontramos na Flip e, em Paraty, ele era puro charme. Nos bastidores da tenda apinhada, perguntou sobre o público. Ao saber da multidão, brincou: “Mas que mau gosto tem essa gente!”. No palco, sozinho, fez uma das “aulas-espetáculo”, uma conversa aparentemente aleatória em que expunha, com perfeição retórica, seus princípios de teatro e cultura. Imitava uma grã-fina, zombava do sotaque nordestino criado pelas telenovelas da TV Globo e, em plena Flip, vendo-se na capa de uma revista de cultura, fez a plateia gargalhar: “Mas como escritor é feio!”.
A autoironia era sua especialidade, como quando dizia que cobrava tantos reais para viajar para uma palestra e pagava o dobro para não sair de casa. Ou contava que, numa viagem de avião (que ele detestava), simulou um mal-estar. Diante da aeromoça que perguntava se ele estava sentindo falta de ar, teria dito: “Eu tô é com falta de terra, minha filha!”.
Ariano Suassuna, o personagem, foi, previsivelmente, um ferrenho crítico do mangue beat, oposto em tudo, a partir do nome, ao movimento armorial. Dizia a Chico Science que subiria com ele num palco se trocasse o nome para Chico Ciência e, entre uma rusga e outra, terminou se aproximando do líder do Nação Zumbi, que o chamava de “mestre”. Na trágica morte de Chico, em 1997, as lágrimas de Ariano junto ao caixão não eram cena, não eram do personagem, mas do homem, inteligente e sofisticadíssimo, que sabia estar diante de um par, de um artista tão decisivo para a cultura de seu tempo.
Só resta a nós, muitas vezes equivocados para os valores de Ariano, lamentar mais uma deserção na brigada anticretinice. Rabugento num mundo de “fofos”, radical em meio a defensores anódinos de consenso, Ariano Suassuna foi fundamental por seus incontáveis e imensos acertos e, de forma tão importante, por seus próprios e veementes equívocos.