Memórias do presente

No cinema

01.07.16

Alerta necessário: o texto a seguir contém uma dose inevitável de política.

Em artigo publicado recentemente na Folha de S. Paulo, o pesquisador e professor de filosofia Marcos Nobre observou que vivemos um momento de “normalização do caos”, a exemplo do que ocorreu em outras épocas da história do país, notadamente nos anos 1980. O documentário Futuro junho, de Maria Augusta Ramos, parece ser a realização cinematográfica dessa ideia, ou dessa percepção.

O filme acompanha alternadamente o dia a dia de quatro personagens que vivem e trabalham na cidade de São Paulo nas semanas que antecedem a Copa do Mundo de 2014: um motoboy (Alex Cientista), um metalúrgico (Anderson dos Anjos), um líder sindical dos metroviários (Alex Fernandes) e um economista de uma empresa de investimentos (André Perfeito).

Foi um junho violento, caótico, passional, como todos se lembram. Manifestações de rua (“Não vai ter copa”), greves nos transportes, repressão policial, ufanismo, excitação, desencanto, esperança, tudo misturado.

Odisseias cotidianas

Ao seguir os personagens em sua odisseia cotidiana, em suas relações com o trabalho, com a família e com a cidade, o documentário acaba por revelar não apenas vidas singulares, distantes dos estereótipos, como também os espaços urbanos segregados, as fraturas sociais, as diferentes necessidades e expectativas que um difuso sentimento nacionalista não bastava para unir e cimentar.

Não por acaso, numa metrópole em que as pessoas gastam grande parte do seu tempo na locomoção, predominam no filme as jornadas de trem, ônibus, automóvel, moto. Já as primeiras imagens – tomadas aéreas de São Paulo a partir de um helicóptero – sublinham a ideia de deslocamento. Mais que isso: como notou o crítico Ismail Xavier no debate sobre o documentário no festival de Tiradentes, em janeiro, essa abertura sugere uma interpretação mais ousada, o olhar sobranceiro de uma elite financeira que anda de helicóptero e que movimenta (ou paralisa) na prática as peças humanas lá embaixo no chão da cidade. Entre parênteses: “futuro junho” é uma expressão extraída do jargão do mercado de capitais.

Não por acaso também o núcleo dramático do filme é a greve dos metroviários que veio acrescentar caos ao caos, mas que também ocasionou uma fecunda ruptura das fronteiras delimitadas, das vias pelas quais as formiguinhas humanas podem ou não trafegar na metrópole. A repressão, claro, foi brutal. Imprevistamente, durante a greve, o líder sindical acompanhado pelo filme, Alex Fernandes, foi demitido sumariamente. Ruim para a vida, bom para o filme.

Outro evento inesperado ocorrido durante as filmagens foi a descoberta de que o filho pequeno do motoboy Alex Cientista (que também é rapper, daí o nome artístico) sofre de epilepsia. Mais uma vez, ruim para a vida, bom para o filme. Uma miríade de pequenos e grandes dramas acontece na trajetória desses personagens multifacetados enquanto a cidade vibra e pulsa à sua volta.

Câmera invisível

A exemplo do que acontecia em seus longas anteriores (Justiça, Juízo, Morro dos Prazeres), a estratégia expositiva de Maria Augusta Ramos é a da “câmera invisível”, isto é, de registrar as ações e falas dos personagens como se estes não tivessem consciência da filmagem. Há um tanto de encenação do real nesse dispositivo, que contrasta por exemplo com o método de Eduardo Coutinho, para quem era essencial expor a relação entre quem filma e quem é filmado.

Seja como for, a abordagem de Futuro junho tem uma eficácia tremenda. É um documentário vibrante, caloroso, de uma notável inteligência em sua organização e montagem. Quem quiser conhecer melhor o Brasil destes tempos confusos ganhará muito se assistir a esse filme. A “normalização do caos” de que fala Marcos Nobre (ainda que num sentido mais político-institucional) poderia ser seu segundo título.

O eterno retorno

A sensação de tempo cíclico, de regresso periódico a questões que não se resolvem, predominou também na 11ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, encerrada no último dia 27. Voltada sobretudo para a história, a memória e a preservação, a mostra este ano homenageou o imenso Eduardo Coutinho e teve como recorte básico o cinema brasileiro produzido entre 1976 e 1988, ou seja, da “abertura política” à Constituinte que sacramentou a “nova república”.

Filmes marcantes do período, como Cabra marcado para morrer (Coutinho, 1964-84), Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1981), Extremos do prazer (Carlos Reichenbach, 1983) e A próxima vítima (João Batista de Andrade, 1983), trouxeram de volta feridas ainda abertas, como a concentração fundiária, a opressão dos mais pobres, a violência contra a mulher, a corrupção, a brutalidade policial.

Numa sessão especial foi exibido Um dia na vida (2010), o documentário “clandestino” de Eduardo Coutinho que reproduz trechos de programas da TV aberta gravados ao longo de 24 horas. É uma espécie de horror concentrado, com seus pastores ensandecidos, seus programas policiais sangrentos, seus métodos milagrosos de emagrecimento, sua avassaladora publicidade infantil.

O filme de Coutinho está disponível no Youtube para quem quiser conferir. O ideal, porém, seria vê-lo na tela grande, pois é o deslocamento para uma outra condição de recepção que lhe confere pleno sentido. Na televisão, o espectador, ao menos em princípio, está no comando da operação, pode mudar de canal, desligar o aparelho ou sair da sala quando quiser; no cinema ele se coloca à mercê das imagens, o que faz toda a diferença.

Como observaram em Ouro Preto os participantes de uma mesa sobre o filme (Consuelo Lins, João Moreira Salles e Cezar Migliorin), o desafio é não virar às costas a esse concentrado, é manter a perspectiva crítica sem julgar seus espectadores nem vê-los como vítimas. Por ali, por aquelas imagens muitas vezes banais, muitas vezes sórdidas, muitas vezes grotescas, passa muito do que somos como cultura, como sociedade. Uma sociedade que se agita, cheia de som e de fúria, mas parece não sair do lugar. Eppur si muove, como disse o outro.

Futuro junho fica em cartaz de 7/7 a 20/7 no cinema do IMS-RJ.

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