Valdet Sala em 1977

Valdet Sala em 1977

Vida longa ao espírito revolucionário

Artes

07.11.16

São tempos difíceis, sabemos. É neles que somos levados a procurar algum tipo de abrigo, acalanto, refúgio. Na arte, e nos seus espaços privilegiados – como a linda casa modernista que sedia o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro –, há essa espécie de abertura para outras narrativas, outras histórias, outros tempos que, se não chegam a nos proteger, por vezes nos guardam de violências piores. A memória também é uma espécie de refúgio e talvez seja a parte mais interessante da exposição Anri Sala: o momento presente, em que o jovem artista albanês Anri Sala ocupa os espaços da casa com uma sonoridade estranha ao cotidiano. Se no dia a dia a vida é permeada de ruídos ordinários – vozes, máquinas, automóveis, buzinas, animais, avisos sonoros cada vez mais constantes (pense nos ruídos de equipamentos eletrônicos) –, na exposição de Anri Sala a rotina é suspensa por diferentes intervenções musicais a nos lembrar que não vivemos no silêncio do presente e nem podemos deixar de ouvir os ecos do passado.

Valdet Sala e Anri Sala em cena de Intervista (Finding the Words)

Valdet Sala e Anri Sala em cena de Intervista (Finding the Words), de 1997

O silêncio é, de certa forma, o protagonista de um filme de juventude de Sala, em exibição na Pequena Galeria –numa edícula fora e acima do prédio principal, como se esse destaque já indicasse, por si só, o lugar da memória. Intervista (Finding the Words) é uma realização de 1997, quando Sala ainda era estudante de cinema em Paris. Havia apenas cinco anos a pequena Albânia tinha deixado de ser um país comunista, quando Sala encontra no fundo de uma caixa um rolo de filme de 1977. Nele, sua mãe, Valdet Sala, então uma das jovens lideranças políticas, participa de uma solenidade oficial do partido e concede uma entrevista. No entanto, embora as imagens estejam intactas, o áudio do filme se perdeu.

É aí que entra o subtítulo do filme – procurando as palavras –, que lança Sala numa aventura de recuperação das falas da mãe. O mistério só se desfaz com a ajuda da leitura labial que a investigação do artista conseguiu em uma escola albanesa para crianças surdas-mudas. Depois que a imagem do vídeo ganha legendas, longe disso significar um desfecho, o curso da história dá uma guinada diante da perplexidade da mãe, que não reconhece o próprio discurso político de época:

“Essa reunião foi convocada para expressar claramente a situação política do país em termos da luta contra o imperialismo, o revisionismo, e as das superpotências. A luta só é possível com o Partido Marxista-Leninista. E apenas se os jovens unirem forças na guarda do Partido Marxista-Leninista. Analisando a atual situação política, não apenas em alguns países, mas em todo o mundo, e ao discutir os problemas, nós podemos perceber a importância do movimento revolucionário popular.”

Posta diante da sua fala do passado, Valdet Sala produz o ponto alto do pequeno filme quando, ao mesmo tempo, não se reconhece no próprio discurso e não consegue renegá-lo completamente, dizendo, em 1997: “Os mandamentos do comunismo eram ser honesto, socialmente consciente, idealista, enérgico, otimista etc… Eu era tudo isso. Ainda sou. Ainda trabalho por isso hoje. Para que a sociedade seja mais consciente, mais atenta aos indivíduos.”

Resta ao espectador encontrar o desencaixe entre passado e presente. Vendo um filme de 1997 quase 20 anos depois, o espectador pode passar pela mesma experiência de Valdet Sala e perceber o anacronismo do discurso de 1977, datado pela Guerra Fria, o centralismo partidário e, porque não, um condenável totalitarismo de esquerda, para usar uma expressão tão em voga nos tempos que correm. Esse mesmo espectador pode também reconhecer a atualidade do discurso de 1997 e sair da sala pensando pelo que trabalha ainda hoje. Num filme sobre memória e passado, a exposição de Anri Sala mostra que presente e o futuro estão em permanente jogo de diferença ativa, de conservação e superação, de reforma e revolução.

A exposição Anri Sala: o momento presente está em cartaz no IMS do Rio de Janeiro até 20 de novembro.

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