O lançamento da nova série Twin Peaks (2017), de David Lynch, inspirou a programação de dois filmes do autor no cinema do IMS Rio, em cópias especiais trazidas da França: Eraserhead, seu primeiro longa, que acaba de ser disponibilizado para distribuição após restauro em 4K, e Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer. Os filmes serão exibidos nos dias 15, 22 e 23.
David Lynch começou a carreira artística como pintor. No documentário David Lynch: A vida de um artista (2016), ele diz que enveredou para o cinema atraído pelas possibilidades de uma “tela com movimento e som”. Em um artigo de 7 de maio de 1990 da New York Magazine, há uma citação de Lynch sobre sua série de televisão Twin Peaks (1990-1991), exibida pela ABC: “Se você pode falar sobre o assunto, você não está usando o cinema.” Até então o diretor era conhecido por filmes como Eraserhead (1978), O Homem Elefante (1980), Duna (1984) e Veludo azul (1986), e a série foi um caso raro de sucesso de audiência que mantinha todas as características “cult” que marcavam os filmes, todas as idiossincrasias de Lynch, ainda que dosadas pelo coprodutor Mark Frost.
Na série original, o corpo de Laura Palmer, adorada adolescente de dezessete anos, aparece envolto em plástico próximo à serralheria da cidadezinha, perto da divisa com o Canadá. Antes mesmo que o xerife local possa começar a investigação, surge outra vítima de tortura e estupro, e o agente especial Dale Cooper, do FBI, entra em cena para assumir o comando. A premissa parece bastante simples e até familiar, mas, na companhia do agente Cooper, começamos a desvendar outras possibilidades, outros planos de existência e criaturas que parecem humanas, mas não são.
Ainda na New York Magazine, Mark Frost explica como a emissora foi convencida a bancar a série: “Dissemos que faríamos uma novela sombria e misteriosa de duas horas a respeito de um assassinato, passada em uma cidade fictícia do noroeste dos Estados Unidos, com grande elenco, de vanguarda. E desde cedo, logo depois de entregarmos o piloto, eles disseram que havíamos entregado exatamente o prometido. (…) Basicamente, disseram ‘rapazes, façam a série, estamos ansiosos para ver como vai ficar.’”
Na década de 1990, Frost atuava como o reality check de Lynch. “Temos de agradar um público maior,” dizia Lynch. “Ele deu uma polida e me tornou mais apresentável”. Vinte e seis anos depois, com o retorno de Twin Peaks, exibida no Brasil pela Netflix, para o bem e para o mal não há mais a preocupação em agradar um “público maior”.
Muito da nostalgia com relação a Twin Peaks pode se resumir ao sentimentalismo de um conjunto de cacoetes da série original, envolvendo pedaços de torta, donuts, um café delicioso e moças bonitas capazes de dar um nó em hastes de cereja usando apenas a língua. É como se apaixonar pelo visual peculiar dos filmes de Wes Anderson sem compreender que, para além da peculiaridade, existem temas mais densos sendo abordados.
Além do estilo e do senso de humor característicos de Lynch, Twin Peaks conta a história de uma adolescente, quase um símbolo local de pureza, que foi estuprada e assassinada, narra sua convivência com o mal na aparente segurança de sua própria casa e de sua cidade pacata, rodeada de amigos. A volta da série, com o subtítulo The return, é um teste para os nostálgicos. Os dois primeiros episódios são puro Lynch, sem filtros, despreocupado com a estrutura novelesca ou policialesca que deram forma ao piloto.
Lynch, que também participa da trilha sonora, da mixagem do som e da edição da nova série, declarou que o retorno deve ser encarado como um filme de dezoito horas (a ser lançado ao longo de três ou quatro meses). Com isso em vista, é possível entender por que ele parece “perder” tanto tempo em cenas aparentemente desnecessárias, que não trazem informações novas ou relevantes. Às vezes é como assistir um filme de duração normal em câmera lentíssima. Além da duração de cada cena individual, há uma longa demora para que qualquer trama seja levada adiante, isso quando é levada adiante.
Há uma cena logo no primeiro episódio, por exemplo, em que o Dr. Jacoby, interpretado por Russ Tamblyn, recebe caixas enormes contendo várias pás. Só descobrimos para o que elas servem no quinto episódio, mais ou menos quatro horas depois. E nem é algo tão importante, é apenas curioso. Isso não é uma reclamação, mas um aviso. Seja assistindo aos poucos ou como um filme de dezoito horas, há bastante coisas para assimilar. Temos um dos diretores mais inovadores do nosso tempo trabalhando sem qualquer amarra, e com todo o apoio, para expandir um universo rico e complexo. Cabe, de nossa parte, um ajuste de expectativas, ou no mínimo uma certa abertura ao que ele tem a nos oferecer.
No primeiro episódio, Hawk (Michael Horse) recebe um telefonema de Margaret Lanterman, a saudosa “mulher do tronco”, muito frágil e sem os cabelos (a atriz Catherine Coulson morreu de câncer em 2015), com uma “mensagem do tronco” em relação ao agente Cooper. Hawk não questiona o teor da mensagem, ninguém na delegacia questiona os poderes sobrenaturais do tronco, apenas Chad (John Pirruccello), um personagem novo e babaca, faz um comentário malicioso para em seguida ser enxotado da sala pelo xerife Frank Truman (Robert Forster). A cena é importante para mostrar que, em Twin Peaks, é essencial estar aberto às possibilidades e não se preocupar com os detalhes. Se o tronco disse, está falado. E é bom ficar atento e aberto à mensagem.
Isabella Rossellini, atriz de Veludo azul, afirmou que Lynch é “abençoado”, pois “a maioria das pessoas tem pensamentos estranhos, mas racionaliza esses pensamentos. Como David não traduz as imagens logicamente, elas permanecem puras, emocionais. Sempre que eu lhe pergunto de onde ele tira suas ideias, responde que é como pescar. Ele nunca sabe o que vai pegar”.
“Não sei por que as pessoas esperam que a arte faça algum sentido. Elas aceitam o fato de que a vida não faz sentido,” dizia Lynch décadas atrás. Há sentido em Twin Peaks, mas é muito mais emocional do que racional, uma sensação em vez de uma solução lógica e concreta. No sexto episódio, aprisionado no corpo de Dougie, o agente Cooper (Kyle MacLachlan, cuja atuação lembra Peter Sellers em Muito além do jardim) entrega dezenas de papéis rabiscados ao chefe, repete as últimas palavras ditas como se fosse um papagaio e, sem querer, pede a ele, e a nós mesmos, que make sense [literalmente, “faça sentido”] daquilo, ou seja, que se vire para entender. Seu chefe observa os rabiscos com mais cuidado e, finalmente, agradece, “você me deu muito o que pensar”. Ao desacelerar o passo e romper com as expectativas dos nostálgicos, Lynch quer nos dar algo para pensar e que nós mesmos criemos o sentido, mesmo que não exista um.
Tanto a série original quanto o filme Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (1992) e a nova temporada dependem de uma lógica emocional e não concreta. Em vez de tentar desvendar onde cada peça se encaixa, é melhor simplesmente se render aos mistérios, se deixar levar pelas sensações de cada episódio e tentar compreender o que se passa de forma mais intuitiva e menos racional.
A maioria dos episódios são dedicados a alguém do elenco que morreu. Muitos atores morreram desde as filmagens, ou aparecem apenas em flashbacks. Catherine Coulson, Frank Silva, Miguel Ferrer, Don S. Davis, Warren Frost… A chegada da idade, a fragilidade, a convivência com a doença e a morte são temas sutis, mas presentes, como na discreta conversa de telefone de Frank com seu irmão Harry Truman. Também não há esforço algum da câmera ou da iluminação em esconder linhas de expressão, inclusive de atrizes como Naomi Watts. Retratar os atores de tal forma não é uma exposição cruel da passagem do tempo, mas um gesto de doçura.
É impossível não comparar o oitavo episódio com 2001: Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. Só que, em vez de voltar no tempo parar contar a história do avanço tecnológico da humanidade, Lynch volta no tempo para falar de seu retrocesso, ou do nascimento de Bob, a entidade maligna que habita nossos corações desde a explosão da bomba atômica (não à toa, há um enorme quadro retratando a explosão da bomba atômica atrás da mesa de Gordon Cole, personagem interpretado pelo próprio David Lynch). Não existe nada igual na televisão. Novamente, as demais tramas são suspensas e a maior parte do episódio é um flashback psicodélico, isso sem falar da apresentação da banda Nine Inch Nails, quase um detalhe em comparação com o resto.
Com a série ainda em andamento, e após um episódio tão surpreendente, é difícil imaginar o que há pela frente.