A família no ‘papelório’ de Drummond

Por dentro do acervo

04.03.13

Já é conhecido o lado de Carlos Drummond de Andrade como arquivista. Ele mesmo, em entrevista à Leda Nagle no Jornal Hoje em novembro de 1980, incluiu a atividade de organizar seus documentos como parte de sua rotina: “Gosto muito do meu escritório, de arrumar meus arquivos. Tenho um papelório grande que me acompanha por longo e longo tempo. Coisas dos meus amigos de 1925 (…). Coisas de pessoas que já morreram e que dão uma saudade”.  Diverte-se o poeta ao usar o termo “papelório”, dicionarizado como “quantidade de papéis geralmente sem serventia”, para designar seu arquivo, que é tão rico em histórias. Parte de seu acervo foi depositado no Instituto Moreira Salles em 2011 e, ao consultá-lo, podemos comprovar o minucioso cuidado drummondiano.

Dentro de uma pasta azul estão 11 pequenos dossiês organizados por assunto e data; há alguns documentos curiosos, como receita de vinho e tratado de escritura de uma escrava, ambos do fim do século XIX, todos pertencentes ao tenente Carlos de Paula Andrade, pai do poeta. Um dos destaques é um cartãozinho de participação de casamento, que seria assunto de uma crônica de Drummond de 7 de junho de 1983 publicada no Jornal do Brasil.

O texto remonta à “tarde caprichada de maio, temperatura suave e azul claro”, de domingo 22 do ano 1886. A pequena cidade mineira de Itabira está em doce agitação pelo matrimônio, afinal, celebra-se um casamento, e “o casamento é festa de famílias importantes”. O “croniqueiro”, como Drummond se referia a si mesmo, apesar de revelar a idade do jovem casal de noivos, suprime seus nomes e, principalmente, a sua relação. Pois o casal era Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Teixeira Drummond Andrade, pais do cronista.

Do casamento, que durou 45 anos, e só foi interrompido com a morte do tenente Carlos, em 1931, nasceram 14 filhos, dos quais a maioria faleceu antes mesmo de completar os 2 anos de idade, restando apenas seis que chegaram à idade adulta: Flaviano, Altivo, José do Patrocínio, Rosa Amélia, Carlos e Maria das Dores. Muito da relação dessa grande família está presente em crônicas, como é o caso desta que aqui postamos, em entrevistas que Drummond concedeu e em inúmeros poemas. Entre vários outros, há “A mesa”, de Claro enigma (1951), no qual o poeta narra o que seria a reunião dos Andrade para comemorar o aniversário de 90 anos do pai, traçando as personalidades e os caminhos de cada um dos seis irmãos e dos netos, lembrando até mesmo dos oito que se foram “(…) todos minúsculos,/ todos frustrados”. É claro que à mesa estão o pai e a mãe, a quem em verso o poeta pede “que cosa,/ mais do que nossa camisa,/ nossa alma frouxa, rasgada…”.

Drummond deixaria Itabira, definitivamente, em 1934, mas manteve com a mãe correspondência frequente por mais de uma década, encerrada 14 anos depois, quando ela faleceu. Destaca-se nas cartas o tom íntimo e sempre afetuoso de Julieta ao fazer alguns pedidos ao filho e à nora, Dolores, ao aconselhar maternalmente ou ao dramatizar a saudade motivada pela distância. “Minha mãe era um veludo, um leito adamascado em que eu me reclinava – tão doce que nem me ocupa muito o espírito”, diria Drummond em entrevista à filha Maria Julieta, também jornalista, que herdou da avó materna o segundo nome.

O poeta voltou à cidade uma única vez: para o enterro da mãe. Drummond, o “alguém que, entre descuidos habituais da vida familiar, conservou esse amor às pequenas coisas passadas, capaz de fazer com que não passem de todo”, como ele mesmo escreveu na crônica, ainda guardou de Julieta Augusta uma receita de doce, o santinho de falecimento e inúmeras matérias de jornal que noticiaram o episódio fúnebre. Na verdade, Drummond recolheria toda e qualquer publicação que fizesse referência à sua família ou a Itabira – o que há sobre esta cidade em seu arquivo é história para outro post.

Já com o pai não houve troca de carta. A admiração se manifesta indiretamente. É expressa nos documentos cuidadosamente recolhidos como o livro-razão da família, a planta da Fazenda do Retiro – uma das posses dos Andrade -, bilhetes, certificado de batismo, papelada referente à candidatura de Carlos de Paula a vereador em Itabira etc. Na mesma entrevista à filha, Drummond afirma que amar o pai e compreendê-lo foram seguramente as duas grandes conquistas de sua vida.

Se o cartão de participação do casamento dos pais em 1886 falou muito ao poeta, sua crônica, escrita há 30 anos, fala duplamente a leitores e curiosos de 2013.

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