Do “lá fora” ao “aqui dentro”

Séries

18.06.14

Depois de um início arrebatador, a Copa teve um momento de ressaca na terça-feira, com jogos fracos, poucos gols e uma atuação decepcionante do Brasil. Repito aqui o que disseram os que realmente entendem de futebol (Tostão, Paulo Vinicius Coelho etc.): faltou meio de campo, faltou cérebro e articulação à equipe brasileira, espalhada e desorganizada num espavorido cada-um-por-si.

Chega a ser irônico: estávamos preocupados com a mobilidade urbana durante o evento, mas foi dentro de campo, na segunda partida do Brasil, que o tráfego foi caótico, atabalhoado, pouco menos que exasperante. Quando bem ou mal conseguiu fluir, encontrou pela frente um guarda de trânsito inflexível, o goleiro mexicano Ochoa, talvez o único jogador brilhante da tarde avara em gols e em bom futebol.

Reino da subversão

O futebol já foi – e em alguma medida segue sendo – um lugar de subversão da ordem geopolítica e social, um “reino da Cocanha” em que o pobre pode derrotar o rico, o fraco suplantar o forte, e países do Terceiro Mundo (Brasil, Argentina, Uruguai) eventualmente triunfam sobre as potências do Norte. Um esporte em que, para brilhar, os atletas não precisam ser altos, fortes e bem proporcionados – que o digam Garrincha, Maradona, Romário, Messi. Uma narrativa, em suma, em que a astúcia de Davi pode vencer a força bruta de Golias.

Nas últimas décadas, como muitos já observaram, houve um nivelamento do futebol mundial, uma certa homogeneização (para não dizer pasteurização) dos estilos de jogo, fruto decerto da globalização econômica e cultural. Por um lado, os melhores jogadores e técnicos são atraídos de todo o planeta para os ricos clubes e ligas da Europa Ocidental. A par dessa força centrípeta, difunde-se globalmente uma maneira “moderna” e eficiente de jogar. Os talentos do mundo cooptados e disciplinados pela poderosa engrenagem do capital.

Nesta Copa, por enquanto – e é bom frisar esse “por enquanto” –, o que estamos vendo? Uma atuação fraca das seleções terceiro-mundistas – isto é, da América Latina, da África e da Ásia – e uma hegemonia das equipes do hemisfério norte (Holanda, Alemanha, Itália).

Times multiétnicos

Mas é preciso ter cuidado com as generalizações apressadas de fundo étnico e cultural. Nos últimos tempos um fenômeno curioso e fecundo veio bagunçar os antigos estereótipos que contrapunham a “força europeia” ao “talento sul-americano ou africano”, a ginga, a criatividade e o improviso da periferia contra a força, a organização e a cintura dura do hemisfério norte. Estou me referindo à abertura das seleções tradicionais da Europa Ocidental aos atletas imigrantes, naturalizados ou oriundos de ex-colônias, resultando na constituição de equipes multiétnicas.

A Holanda, pioneira nessa “mistura” e três vezes vice-campeã mundial, é uma das grandes forças da atual Copa. Tem mais negros no time do que o Brasil. A França foi campeã em 1998 com uma constelação de metecos ou seus descendentes, a começar pelo astro maior, Zidane. A Alemanha vem empolgando o mundo com o reforço de jogadores provenientes da África, do Oriente Médio e do Leste Europeu. Mesmo a Itália, que resistiu mais à abertura, tem como estrela e artilheiro o nigérrimo Balotelli, filho de ganeses.

Desbastado o terreno dos conceitos e preconceitos raciais, afastada a tolice do patriotismo compulsório, podemos apreciar o jogo de futebol a partir de critérios mais ou menos universais, mais ou menos subjetivos, de força, beleza, inventividade, surpresa, poesia. Pois, acima ou ao lado das polarizações evidentes – ser contra ou a favor da Copa, torcer contra ou a favor do Brasil, vaiar ou aplaudir o governo – há outra clivagem importante, aquela entre os que gostam e os que não gostam de futebol. Eu sou dos que gostam, e abro logo o jogo: vou torcer pela seleção cujo futebol mais me empolgar, quaisquer que sejam as cores do uniforme ou da pele dos jogadores.

Fora do campo

Para além da preocupação meio boboca e provinciana de saber o que estão pensando de nós “lá fora”, talvez seja mais interessante pensar no que é que esse grandioso evento pode trazer, e já está trazendo, de questionamento de nossas próprias práticas, aqui dentro.

Curioso, por exemplo, notar como uma invasão de animados torcedores de Gana a um shopping de Natal foi vista como alegre e pitoresca, em contraste com a reação de pânico e ódio repressivo que provavelmente a concentração de um número semelhante de jovens negros brasileiros despertaria em seguranças, comerciantes e parte da imprensa nacional.

Torcedores ingleses e alemães, sufocados pelo calor escaldante, tiram a camisa em metrôs, aeroportos, lojas e restaurantes sem que isso provoque reações indignadas, broncas humilhantes, “mãos na parede”, detenções por desacato. Por que, no dia a dia, os brasileiros não podem fazer o mesmo?

Japoneses recolhem o lixo das arquibancadas ao fim de uma partida, alemães limpam uma praia. Aqui a pergunta se repete: por que, no dia a dia, os brasileiros não podem fazer o mesmo?

Se há algo de vergonhoso sendo exibido mundo afora é a atuação da polícia brasileira, que em toda parte continua espancando manifestantes, prendendo jornalistas e mostrando que está mais do que na hora de desmilitarizar e civilizar essa turba despreparada.

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