Em Girls: a voz e o vazio da geração perdida

Colunistas

22.03.13

A expressão “geração perdida” foi útil em diferentes momentos da história. Perdida, porque mergulhada numa recessão econômica que não abre perspectivas de trabalho. Perdida, porque desorientada pelas imensas transformações que testemunha. Perdida, porque morta nas guerras que assolaram o século XX. Perdida, porque reprimida em sua expressão política, artística e cultural por ditaduras militares. A geração perdida da vez são os jovens norte-americanos, filhos da crise financeira que se abriu nos EUA desde 2008, e desnorteados diante de um mundo no qual todos os valores que ordenariam a vida adulta – maturidade, carreira, família – implodiram. Essa perdição é o pano de fundo e o motor das duas primeiras temporadas da série Girls, escrita, dirigida e estrelada pela jovem Lena Dunham, 26 anos, vencedora do Globo de Ouro como melhor atriz de comédia. É ela quem encarna a personagem Hannah, uma jovem de 24 anos gordinha – 15 quilos a mais, ela anuncia -, aspirante a escritora, e sem dinheiro para pagar sua parte no aluguel de um modesto apartamento no Brooklyn. Sim, porque Hannah e suas amigas moram em Nova York, mas não em Manhatan; fazem sexo, mas não exibem corpos perfeitos, lingeries caras ou velas acesas em torno de banheiras de hidromassagem; e o seriado fez sucesso com a crítica por expor de forma bruta e direta as fragilidades, deficiências e incapacidades dessas meninas que nasceram no ano da queda do Muro de Berlim e ainda eram crianças no 11 de setembro.

Produção da HBO e também vencedora do Globo de Ouro, Girls estreou nos EUA em abril de 2012 e quase simultaneamente no Brasil. Com o fim da segunda temporada, no dia 17 de março nos EUA e em 24 de março aqui, já foram ao ar dez horas de programa, divididos em 20 episódios de 30 minutos pontuados por sexo, tédio, angústia e medo de dar o passo inevitável em direção à “vida adulta”. A expressão aparece inúmeras vezes nos diálogos, sempre como alguma coisa estranha, duvidosa e metafórica, impossível de se materializar se não em forma de clichê, já que, para essa geração perdida, a maturidade não vem acompanhada de nenhum tipo de significação em si. Hannah acha que ser adulta é poder pagar o próprio aluguel, desafio que os pais lhe fazem no início da série, quando convocam um jantar para avisar que vão parar de sustentá-la. Para Marnie, com quem Hannah divide o apartamento, ser adulta é pagar sua própria conta de celular, uma constatação frustrante, porque todas elas ainda estão penduradas em algum tipo de plano de telefone familiar. Para Shoshana, ser adulta é ao mesmo tempo uma aspiração e um mero figurino, por vezes necessário, por vezes adequado. “Devo vestir a calça comprida da vida adulta?”, pergunta ao namorado, sem saber com que roupa ir a uma festa. Não por acaso, Hannah só anda de shorts e macaquinhos que lhe conferem um visual ora infantil, ora ridículo, mas que serve, sobretudo, para reforçar a falta de glamour da personagem.

No realismo de Girls, não há lugar para romantismos adocicados nem para narrativas de algum tipo de felicidade. A crueza das experiências sexuais em Girls chamou a atenção da série na imprensa americana. Duas cenas foram especialmente discutidas como emblemáticas. A primeira, logo no segundo episódio da temporada de estreia, envolve Hannah e Adam (Vagina Panic, episódio 2, primeira temporada), um jovem artista e carpinteiro com quem ela mantém um relacionamento exclusivamente sexual. Não há entre os dois nenhuma atividade social, apenas sexo no apartamento dele, onde ela se apresenta sem ser convidada, apesar de Adam não responder suas mensagens de texto. Primeiro, eles transam. Depois, ele arranca a camisinha e se masturba, absorto em sua fantasia de estar fazendo sexo com uma menina de 11 anos que ele achou na rua. Adam goza sobre o corpo de Hannah, que demora um pouco, mas acaba embarcando na fantasia dele. Discutida em artigo de Elaine Blair no The New York Review of Books, a passagem é tomada como exemplo de ruptura com o modelo das comédias românticas de TV, como forma de exposição da vida sexual de uma geração perdida em experiências que em nada se parecem com a pornografia leve, comum em outras séries de televisão. Blair argumenta que esse tipo de realismo confere qualidade ao trabalho de Lena Dunham.

De fato, todos os episódios são tão realistas que por vezes tornam os 30 minutos tão enfadonho quanto a vida das personagens parece ser. Há algumas insistências temáticas, e sexo é uma delas. Por isso, a segunda cena de sexo que chamou a atenção da crítica foi protagonizada também por Hannah, mas desta vez com um médico divorciado de 40 anos a quem ela conhece por acaso e com quem passa o fim de semana (One Man’s Trash, episódio 5, segunda temporada). Interpretada por Emily Nussbaum na New Yorker como um tipo de sexo inédito na TV, desta vez é o realismo da cena em que ela pede ao parceiro que a faça gozar que atrai o interesse pelo trabalho de Lena. Despudorada em muitos aspectos – as cenas de nudez sem nenhum charme, parceiros casuais que não cumprem o roteiro romântico da sedução em jantares caros e vinhos idem – Girls exibe sexo na mesma medida em que mostra o vazio em que suas personagens estão imersas.

A segunda insistência temática diz respeito a como ganhar a vida. Todo mundo está envolvido em arte de algum modo – Hannah quer escrever, Marnie é hostess numa galeria – e ninguém quer se render a um emprego apenas para sobreviver. Se, para isso, é preciso ser sustentado pelos pais, pelos avós ou mesmo por um marido rico – com quem Jessa casa e descasa em tempo recorde -, que seja. O importante parece ser não sujar as mãos com atividades menores, porque todo mundo ali tem algo a dizer. De pretensão em pretensão, as meninas alternam sexo – bom ou ruim, a atividade sexual das personagens está em todos os episódios – com angústias sobre como pagar a próxima conta, mas não cogitam a simples conjugação do verbo trabalhar, o que faz o grupo representar uma parcela privilegiada da juventude dourada norte-americana.

Na segunda temporada, quando o ex-namorado de Marnie monta uma empresa de internet e começa a ganhar muito dinheiro, a reação de seus colegas é entre espanto e desprezo, como se nada tivesse mesmo a menor importância. O que faz os pequenos dramas existenciais dos personagens se tornarem interessantes é a peculiar capacidade de Hannah perceber o quanto são patéticos os problemas da sua geração perdida. Esse é o ponto que levou o trabalho de Lena Dunham para a TV, o que faz o tédio das meninas parecer interessante aos olhos do espectador, e que faz a crítica chegar a chamá-la de “Woody Allen de saias”.

Neste aspecto, Girls por vezes é uma série difícil de assistir. Para se identificar com a narrativa, o espectador acaba sendo empurrado para a mesma experiência entediante e eventualmente nonsense das meninas, o que coloca pelo menos dois problemas: o primeiro, ficar enjoado, pensar algo como “não é possível que não vá acontecer nada”, e imediatamente depois perceber que a série vai estar sempre girando em torno desse não-acontecimento. O segundo problema é começar a torcer para que as meninas tomem um rumo na vida e também imediatamente depois perceber que rumo, projeto, finalidade, objetivo e outros termos semelhantes estão ausentes do vocabulário da geração perdida. E não é só por falta de oportunidade, mas por opção de transformar em projeto de vida o lugar à margem.

Duro, seco, rude são alguns dos adjetivos que podem ser usados para explicar o seriado, muitas vezes comparado a Sex and the city – a série estrelada por Sarah Jessica Parker entre 1998 e 2006 na qual quatro nova-iorquinas passadas dos 30 anos querem experimentar sexo casual, “como homens”. Vivem em Manhattan, bebem exuberantes Cosmopolitans, frequentam restaurantes e bares da moda, calçam e sandálias de 500 dólares, vestidos de grife, e, como bem observa Elaine Blair, contam histórias que discutem como as mulheres devem conduzir suas vidas amorosas. É esta a função de Carrie, a protagonista, autora de uma coluna em um jornal de Nova York no qual narra suas dúvidas e apreensões sobre a vida de solteira, cuja trajetória cumpre o clássico percurso das heroínas de comédias românticas. Trata-se de encontrar um parceiro. Primeiro, ela encontra o parceiro errado, o que a leva a sofrer até o difícil momento de abandoná-lo. Recuperada do erro, ela sairá em busca de novo parceiro, e numa peripécia da história – em Sex and the city, o homem certo foi o homem errado repaginado – encontrará o príncipe da sua vida.

Em Girls, não se trata de mostrar como uma jovem deve viver, mas de expor de forma por vezes bem humorada, por vezes dramática, a vida comum que as comédias românticas não são capazes de mostrar. Ainda assim, a comparação com Sex and the city é tentadora. Marnie tem um bom emprego, um namorado e parece com a centrada Miranda. Jessa encarna a maluquinha cujo portfólio de experiências sexuais é comparável ao da personagem Samantha. Shoshana é pudica – ela começa a temporada ainda virgem, apesar de seus 23 anos – como Charlotte. Hannah escreve, como Carrie escrevia, mas com muitas diferenças. Embora a escrita de si seja para as duas personagens uma forma de construção de subjetividade, Carrie era autora de uma coluna semanal em um jornal impresso. Já Hannah escreve um blog, um twitter (como na vida real, Lena é uma twitteira compulsiva) e se relaciona com amigos e namorados por mensagens de texto, o que também permitiria chamá-las de “geração text me”. Ao longo das seis temporadas, Carrie lançou mais de um livro, todos impressos em grandes editoras, com acordos e adiantamentos negociados em jantares sofisticados e animadas noites de autógrafos. Já Hannah começa a série anunciando-se como a que pretende ser a voz da sua geração, para chegar ao final contratada para escrever um e-book do qual não consegue dar conta.

Quando escrever passa a ser um compromisso formal, com contrato em editora, prazo e cobrança, Hannah paralisa, numa indicação de recusa à maturidade. A voz da sua geração fica muda e a série se rende ao jeito americano de interpretar tudo como síndrome. Acometida por um conjunto de manias que configuram um transtorno obsessivo-compulsivo, Hannah leva a vulnerabilidade até o limite. Mas o que poderia ser o apogeu da carga dramática que a série vinha construindo desde a primeira temporada termina por ser uma saída fácil. Rotulada por uma síndrome e medicada, Hannah parece querer nos dizer que crescer dói tanto que é impossível suportar. Que a saída seja o remédio parece contraditório com a trajetória de quem começou afirmando a escrita como forma artística e criativa de vida. Suas experiências se justificavam como matéria-prima dos seus ensaios e ela podia não conseguir pagar o aluguel, mas era capaz de sair de si para se observar como geração perdida. Na cena de sexo com Adam, por exemplo, ela reconhece que, enquanto ele realizava suas fantasias, tomava notas mentais: “Um escritor é alguém ocupado em fazer anotações enquanto outras pessoas estão tendo orgasmos”.

Autora e personagem conseguem fazer dessas notas mentais um programa de TV original, no qual muitos dos episódios giram em torno de nada – não há festas, acontecimentos, encontros, jantares, só a exposição de um cotidiano sucessivamente voltado ao que falta. Girls mostra com uma narrativa original um grupo de meninas ora perdidas, ora supresas com o fato de que será preciso vir a trabalhar pesado para tornar-se adulto. Na TV, expressam não entender bem o motivo pelo qual deverão abdicar da juventude em função de um projeto de vida. Na vida real, depois do sucesso de seu trabalho, a atriz e roteirista Lena Duham reconheceu, em entrevista a Vanity Fair: “O trabalho duro compensa. Estou muito chateada com o meu pai por ele estar certo sobre isso”.

Carla Rodrigues é jornalista e professora (Comunicação/PUC-Rio, Filosofia/UFF)

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