Autor de nove romances, entre eles os premiados e traduzidos em diversos países Nove noites e O filho da mãe, publicados no Brasil pela Companhia das Letras, Bernardo Carvalho estreou recentemente no Blog do IMS a coluna Diário de Berlim. Da Alemanha, onde passará o próximo ano como convidado de um programa de residência criativa, Bernardo falou sobre a condição do estrangeiro nos seus romances, a vida na capital alemã e como classifica a literatura que produz.
Você já passou algumas temporadas no exterior e fez viagens que foram fundamentais para a criação dos seus romances. Ser estrangeiro se tornou uma condição para escrever?
Acho que já era uma condição antes mesmo de eu começar a viajar para escrever, como foi o caso do Mongólia e de O filho da mãe, duas encomendas. No meu primeiro livro, Aberração, já havia histórias pelo mundo inteiro. A condição de viajante, para mim, equivale à afirmação de uma individualidade que não pode ser submetida a nenhuma corporação, associação ou confraria, seja ela nacional, étnica, profissional ou familiar. É estar fora do lugar sempre. É essa, para mim, a condição para escrever.
Quais são as suas obrigações enquanto participa da residência criativa?
Nenhuma. Vou participar de alguns encontros etc., mas não sou obrigado a nada. Por outro lado, vim porque quero escrever um romance. E essa é a minha prioridade absoluta.
Apesar de pouco tempo em Berlim, imagina-se que você já tenha interesses claros sobre o que ver, ler e assistir. Como é a vida cultural na cidade e como tem sido a sua rotina nesse aspecto?
Berlim é uma cidade incrível. É um lugar-comum dizer isso hoje. Na verdade são muitas cidades numa só. Não é uma cidade bonita, mas ao mesmo tempo é um dos lugares mais vivos que eu conheço. Parece que aqui tudo depende de muito pouco. Você não está em Nova York, não está em Los Angeles. Aqui não é o lugar do dinheiro, da profissionalização e do mercado. E isso te alimenta também. Quanto mais coisas acontecem à sua volta, quanto mais as coisas parecem possíveis, mais você tem vontade de fazer coisas também. Você tem tudo em Berlim, o melhor da alta cultura e o melhor da cultura alternativa. E tudo acontece ao mesmo tempo. O interessante é que, ainda assim, não é um lugar dispersivo. Ao contrário, essa vida toda só te faz ficar mais concentrado no seu próprio trabalho, como se você estivesse sendo alimentado por uma disposição geral para a criação. Você consegue converter toda essa energia para o seu próprio trabalho e eu acho que não é à toa que todo mundo quer vir pra cá. O problema, para mim, é justamente o que ler. Porque é muito frustrante para uma pessoa como eu, que mal fala uma palavra de alemão, entrar nas livrarias mais incríveis e não poder ler nada.
No mais recente debate da série Desentendimento, do IMS, Beatriz Rezende e Alcir Pécora trataram de literatura contemporânea brasileira e citaram você como um exemplo de autor que não se encaixa no perfil de ‘literatura nacional’, inclusive se nega a participar disso ou, como disse Beatriz, se ressente por ser analisado dessa forma. Como você classifica, então, a sua literatura?
Aos poucos, fui entendendo que só consigo existir como escritor se eu não fizer parte do que me cerca, de onde eu estou, e sobretudo se não fizer parte daquilo com o que tentam me identificar a priori, brasileiro, gay etc. Essa é uma forte tendência da crítica e da literatura hoje. Ela vai reduzindo tudo à expressão da experiência e da identidade (étnica, nacional, sexual etc.) do autor. É a base do multiculturalismo, que acabou se impondo como perspectiva dominante. Pra muita gente, isso pode ser libertário. Para mim, é uma prisão. Preciso não me identificar para poder escrever. É por isso que as viagens acabam sendo tão fundamentais. O “estrangeiro” é, em princípio, o lugar da incompatibilidade, da contrariedade, da imossibilidade de identificação e, de certa maneira, também do mal-estar. Mas é só aí que eu consigo escrever, onde não falo a língua. Ou melhor, onde a língua não é minha. É engraçado um escritor dizer isso. Mas isso me interessa. Encontro o meu conforto de escritor na incompatibilidade com a própria língua. E isso está refletido na minha própria maneira de escrever e de lidar com a minha língua. É como se eu fizesse do português uma língua estrangeira.