A exposição Tutto Fellini, que o Instituto Moreira Salles do Rio apresenta até 17 de junho e que no mês seguinte entrará em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, é uma oportunidade privilegiada de mergulhar no universo de um dos maiores artistas que o cinema já produziu.
Entre os mais de 400 itens da mostra há fotos, cartazes, páginas de jornais e revistas de época, vídeos e, acima de tudo, desenhos e esboços do próprio Fellini para personagens, figurinos e cenários de suas obras.
Mas o melhor mesmo é a retrospectiva de mais de vinte filmes que acompanha a exposição. Os jovens que não conhecem a filmografia do diretor, ou que só a viram parcialmente na tela pequena da TV ou do computador, poderão desfrutar da delícia que é ficar à mercê da fantasia transbordante de Fellini. Quem já viu certamente vai querer novas doses na veia. Eis aí um vício que só faz bem.
Provinciano e universal
Como todo grande artista, Fellini supera dicotomias que pareceriam inconciliáveis: o provinciano e o universal, a tradição e a vanguarda, o sagrado e o profano, a razão e a intuição, a nostalgia do que já foi e o sonho do que ainda não é.
A associação do adjetivo felliniano a uma imagem de exuberância cenográfica, excessos cômicos e mulheres peitudas é uma redução altamente empobrecedora. Seu cinema é, paradoxalmente, multifacetado e sempre o mesmo. Nele convivem o burlesco de Abismo de um sonho, o trágico de A estrada da vida, o patético de Noites de Cabiria, o visionário de E la nave va e A voz da lua, o nostálgico de Amarcord e Os boas-vidas, o iconoclasta de Roma, o moralista (no melhor dos sentidos) de A trapaça e A doce vida, o autorreflexivo de Oito e meio, o dionisíaco de Satyricon.
Por falar em Satyricon, alguns bastidores de filmagem dessa viagem à Roma pré-cristã podem dar uma ideia da amplitude dos talentos exercidos por Fellini no set. Num deles, em preto e branco, infelizmente (pois o filme é de um colorido voluptuoso), vemos o cineasta como autêntico maestro regendo o caos aparente de uma grande cena, com centenas de figurantes.
http://www.youtube.com/watch?v=VzJ5qQ8-ppE
No outro flagrante (este, colorido), o diretor mostra toda a sua minúcia e delicadeza ao rodar uma cena íntima, dirigindo-se em sussurros com seu inglês macarrônico aos três jovens atores que contracenam na cama. Em seguida, no mesmo clipe, vemos a cena tal como ficou no filme.
http://www.youtube.com/watch?v=r8oo7A0bO-Q
Como se sabe, Fellini não filmava com som direto. Ou seja, todos os diálogos de seus filmes eram dublados posteriormente pelos próprios atores ou por outros. No set de filmagem, frequentemente ele fazia tocar uma música que daria o andamento e o clima da cena, não necessariamente (aliás, quase nunca) a música que seria aproveitada na trilha sonora definitiva.
Fazia isso porque seu cinema não era jornalístico, nem literário, nem tampouco teatral, embora pudesse se servir ocasionalmente dessas fontes. Era, acima de tudo, plástico e musical. Não por acaso, trabalhou quase sempre com o mesmo compositor, Nino Rota (até a morte deste, em 1979), com o mesmo diretor de fotografia, Giuseppe Rotunno (a partir de Satyricon), e com o mesmo montador (Ruggero Mastroianni, irmão de Marcello, desde Casanova 70). Eles entendiam plenamente o que o mestre queria. O resultado está na tela.
* Na imagem da home que ilustra esse post: uma cena do filme Satyricon.