Lançado comercialmente em dezembro de 1974, Vai trabalhar, vagabundo! será exibido no cinema do Instituto Moreira Salles em cópia restaurada no sábado, 22 de novembro, em sessão em homenagem a Hugo Carvana. A nota crítica reproduzida abaixo foi publicada na estreia do filme, e vai aqui não tanto pelo que revela do filme e sim pelo que espelha do sentimento com que ele foi recebido há quarenta anos. Depois de dez anos de ditadura, o primeiro longa-metragem de Carvana surgiu como uma reconquista, no espaço da fantasia e por um tempo fugaz como o do carnaval, da liberdade perdida.
Vai trabalhar, vagabundo! termina com o reencontro de todos os personagens para formar algo semelhante a um bloco de carnaval. Os personagens então parecem ligados pela cumplicidade comum aos grupos que saem à rua para brincar o carnaval. Não vivem mais os pequenos desentendimentos da história recém-terminada. É como se os problemas que enfrentaram até há pouco tivessem sido solucionados, ou como se eles tivessem decidido esquecer tudo o mais para se dedicar ao carnaval.
A solução não é nova. Com frequência, terminada a história, alguns filmes apresentam os intérpretes mais ou menos assim como no teatro, ao final de uma peça, os atores voltam à cena para agradecer os aplausos. A intenção aqui é diversa. Um agradecimento, sim, mas principalmente um deslocamento da história para uma outra dimensão. A história acabou, mas o filme não. O final depois do final é parte integrante do espetáculo. As imagens deste quase posfácio, digamos assim, explicam o que veio antes, analisam o que acabamos de ver, carnavalizam o que acabamos se ver. Nelas, numa espécie de desfile de escola de samba. Os personagens, inseridos num espaço e tempo diferentes daqueles em que a história foi contada, conversam então diretamente com o espectador por meio de um gestual à flor da pele, por uma expressão corporal imediata, absoluta. Improvisação livre. Com o ator solto, sem personagem ou cena para interpretar, o quase posfácio resume o filme que acabou de passar na tela. Vai trabalhar, vagabundo! reafirma então que todo o tempo se mostrou ao espectador como uma fantasia, um brinquedo, um jogo de faz de conta. Por trás de cada personagem, do vilão ou do herói (e a rigor nem seria lícito falar em vilão e herói), encontra-se principalmente a satisfação de brincar de uma coisa ou outra.
O filme começa com a saída de Dino da prisão. Convém acentuar: na sequência de abertura a imagem é em preto e branco e o som é distorcido, difícil entender os conselhos do guarda que acompanha o preso até o portão do saída. Sair de prisão significa, aqui, deixar um cotidiano descolorido e de falas ininteligíveis para cair no carnaval, no mundo de cores da fotografia de José Medeiros. Convém acentuar ainda: não há nenhuma informação sobre o possível delito que levou Dino a ser preso e nenhuma informação sobre o presídio – pode ser um cárcere de verdade concreta ou um muro imaginário, um estado de coisas, uma ordem restritiva que prende o indivíduo entre quatro paredes. O que temos na tela é a libertação de alguém preso por uma razão qualquer, ou sem razão qualquer, preso simplesmente porque foi encontrado solto, andando impunemente pelas ruas da cidade (coisa nem tão difícil de acontecer). O que temos na tela é uma história contada a partir da volta à rua, à liberdade, ao carnaval (coisa nem tão facil de acontecer).
Esta sensação de se encontrar solto para brincar como criança é sublinhada pelo aparecimento da cor e pela alegria que o personagem demonstra com seu modo de caminhar como quem dança. No reencontro do preso com o espaço aberto, no trajeto entre a prisão e a rua, Dino desfila como um passista de escola de samba. A prisão ficou para trás. Só a liberdade conta. Uma vez fora das grades, começa o carnaval.
O carnavalesco em Vai trabalhar, vagabundo! não está apenas na superfície, no imediatamente visível. Está na estrutura. Da cena à estrutura que organiza a cena, tudo no filme se compõe como uma fantasia. Como máscaras, como caricaturas, talvez nem tanto de personagens reais do cotidiano do Rio de Janeiro, mas de um personagem criado pelo dia a dia da cidade. Babalu, Russo, e especialmente Dino, são, na verdade, caricaturas de uma caricatura: o malandro imaginado pela ficção carioca como um herói para se opor ao trabalhismo do tempo de Getúlio Vargas, ao apelo para o trabalhador trabalhar ainda um pouco mais. E os intérpretes, eles também, ou principalmente, atuam como quem não trabalha, como quem interpreta seu personagem com um gesto largado, qualquer. Não é bem assim, mas é o que parece. De um certo modo, o espectador percebe mais o ator que o personagem, se diverte mais com o fato de ver alguém que se diverte em fazer de conta que é outro. Assim, Carvana em lugar de Secundino, Paulo Cesar Pereio em lugar de Russo, Nelson Xavier em lugar de Babalu, Nelson Dantas em lugar de Mamede. E Odete Lara, Wilson Grey, Lutero Luis, Fregolente e Rodolfo Arena, entre tantos outros. A alegria do ator, mais que a alegria ou sofrimento do personagem.
A cumplicidade que se forma entre os espectadores e os personagens resulta do que os atores transmitem com sua presença e personalidade e da memória do malandro carioca, imagem de um ideal de liberdade, de um total descompromisso com o que na sociedade impõe uma qualquer ordem do dia próxima do mundo em preto e branco de que Dino se liberta na imagem inicial. Atores e personagens de fato procuram inverter a proposição do título do filme e, subversivos, sugerir para o espectador: vai vagabundear, trabalhador!
A imagem do malandro tem tido, sem qualquer dúvida, a sua melhor expressão no carnaval, onde as portas da prisão são temporariamente abertas. Aí então, levados pelo carcereiro até a saída, todos deixam de ouvir os conselhos – tal como Dino – e esperam apenas o momento de rever as cores do mundo, beber meia hora de cerveja no primeiro bar. Aí então, o Secundino Meireles da prisão se transforma no Dino. Não existem mais diferenças, como as que até então separavam carcereiros e encarcerados. O relacionamento entre as pessoas é ingênuo e igual. Cada um adota o papel que quiser, escolhe sua fantasia que quiser.
Os personagens de Vai trabalhar, vagabundo! sonham com a possibilidade de esticar a atmosfera de carnaval a todos os dias do ano. Babalu, Russo ou Dino, heróis imaginados à imagem e semelhança da ficção popular do malandro, vivem com um pé no mundo real e outro no mundo da fantasia, onde os limites do cotidiano não existem. E isto permite uma superação, através de uma forma mágica, de nossos conflitos. Uma relação mágica com a cachaça, com o dinheiro, com as mulheres, com o trabalho. Então, mesmo as coisas mais tensas tornam-se plena harmonia.
Exatamente por isto, um dos melhores momentos de Vai trabalhar, vagabundo! é aquele em que Dino e Mamede relembram o grande jogo de sinuca entre Babalu e Russo. A ficção popular ganha uma dimensão, digamos assim, épica. Os personagens se transformam em heróis. E, como heróis, eles reaparecem em outro bom momento do filme, a reunião depois da história terminada. Vale notar o cuidado da direção, ao colocar então as pessoas numa escadaria, num bonde e na praia. Os heróis imaginados desfilam numa paisagem real sem sair da atmosfera mágica em que vivem a doce vida.
Carvana aproveita as lições dos fantasiados do carnaval de rua. É certo que o espetáculo se apoia principalmente nos intérpretes, mais ou menos soltos para improvisar em cena, solução certamente inspirada pelo carnaval. Na transcrição das regras do espetáculo carnavalesco para o universo do cinema, o filme consegue flagrar a alegria ingênua do carnaval. Simples assim, mas tal contato com o mundo de sonhos do homem comum estava perdido num canto qualquer. Retomá-lo é um bom ponto de partida.