Bernardo Kucinski na UFSC (foto de Wagner Behr)
Bernardo Kucinski avisa ao leitor na nota introdutória de K.: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. O jornalista e escritor dá tratamento de romance à história de sua irmã, Ana Rosa Kucinski Silva, desaparecida pelo regime militar em 1974. O protagonista é K., na verdade, seu pai, que empreendeu em vão até o fim da vida uma busca por informações sobre a filha – ou, ao menos, pelo corpo dela. O autor evita sentimentalismos e se vale de uma estrutura fragmentada, com cada capítulo significando uma peça do quebra-cabeça que nunca se completa. Lançado no final de 2011 pela editora Expressão Popular, o livro ganhou atenção crescente – e uma nova edição – em 2012, e agora chega a outras línguas: em inglês, espanhol e catalão já em fevereiro; em alemão em junho. Kucinski fala nesta entrevista de suas escolhas para a obra e do quanto há ainda a se dizer sobre a ditadura militar.
1) Sua irmã desapareceu em 1974 e K. foi lançado em 2011. Que importância teve esse tempo para você conseguir escrever o livro e encontrar a estrutura adequada?
O desaparecimento é vivido pelos familiares de diversas formas e em diversas etapas. Escrever um livro não faz necessariamente parte desse processo. A ideia, ainda muito vaga, de um livro desse tipo só me ocorreu há cerca de quatro ou cinco anos. Ficou, então, só na ideia. Há três anos, pela primeira vez, escrevi ficção, uma novela policial. Escrevi com muita facilidade e logo em seguida passei a escrever contos ligados a episódios da infância, família, meu pai, meus primos; esses contos foram puxando, por assim dizer, outras lembranças, e logo surgiram de forma espontânea os fragmentos que dariam origem a K. Nada foi planejado.
2) Desde a escolha de K. como nome do protagonista e do livro, é clara uma associação entre a história narrada e a literatura de Kafka, sobretudo O processo. Quais as associações que você destaca entre o que sua família viveu e o universo kafkiano?
Há uma associação quase automática do problema vivido até hoje pelos familiares dos desaparecidos políticos, que não podem enterrar seus mortos, e a ideia geral de uma situação “kafkiana”, como ficou consagrada no domínio geral. Mas, como eu explico num dos capítulos de K., a relação mais profunda e menos aparente é com o sentimento de culpa que afeta os familiares em alguma medida, senão por outro motivo, pelo simples fato de terem sobrevivido.
3) Muitos personagens são identificáveis, mas você não cita seus nomes. De outros cita, caso do delegado Sérgio Fleury. Quais foram os critérios utilizados? Não citar foi para evitar processos ou também um recurso narrativo para impedir que o livro fosse visto apenas como um documento de denúncia?
Não foi nada pensado. Não houve um critério. Cada capítulo nasceu nos seus próprios termos, sem relação com os demais. Certamente não procurei evitar processos. Talvez até os tenha desejado, quando cito o Fleury ou os professores da USP que decidiram pela demissão da professora por abandono de função apesar de saberem que ela havia sido sequestrada.
4) Seu livro surgiu quase simultaneamente a filmes que depositam um olhar pessoal sobre a ditadura, casos de Diário de uma busca, Uma longa viagem e Marighella. Por que você acredita que essas obras estão aparecendo agora, mais de 25 anos após o fim do regime militar? Que verdades ainda precisam ser ditas ou que perguntas ainda precisam ser feitas sobre as pessoas mortas ou sumidas na ditadura?
Há muitas histórias ainda para serem contadas; muitas verdades a serem ditas. A começar pela verdade fundamental de onde estão os corpos dos desaparecidos. A ditadura brasileira ficou no registro histórico superficial como uma ditadura relativamente branda, que atingiu um numero pequeno de pessoas, mas a verdade é que os métodos usados pela repressão foram especialmente perversos, e milhares de pessoas sofreram em algum grau.