Os produtos mais bem-sucedidos da indústria do entretenimento tendem a se alimentar da previsibilidade. Apostando no conforto, as narrativas costumam progredir por caminhos já estabelecidos, para a satisfação fácil do leitor ou espectador. É como uma guloseima industrializada: você sabe o que esperar daquilo, e sente prazer quando a expectativa se confirma. Via de regra, é da exploração dessa busca pelo familiar que nascem os fenômenos pop.
Isso não se aplica quando o fenômeno se chama Game of Thrones, seriado da HBO que acaba de entrar em sua terceira temporada. Baseada na série As Crônicas de Gelo e Fogo, livros do americano George R. R. Martin (para os fãs e daqui em diante, GRRM), se tornou um sucesso no mundo todo e obteve a glória ambígua de ser o programa de tevê mais baixado ilegalmente em 2012 – um único episódio teve registrados quase quatro milhões e meio de downloads, o mesmo número de espectadores do mesmo programa pela HBO. Esse último fato é o provável motivo por trás da nova política de exibição simultânea de episódios nos EUA e outros países, inclusive o Brasil – o descompasso entre as exibições dos programas era um dos principais argumentos usados como justificativa para o compartilhamento irregular.
Tomando como inspiração a Guerra das Rosas, embate dinástico pelo trono da Inglaterra no século XV, a saga se desenrola em uma versão alternativa da Terra e tem com palco principal o continente de Westeros, onde sete reinos foram unificados sob o domínio do Trono de Ferro sediado em Porto Real. Em Westeros não se pode contar nem mesmo com a previsibilidade das estações: ninguém sabe quando começará um novo inverno, nem quanto tempo ele vai durar, e muito menos qual será a sua intensidade. É uma encarnação da incerteza que está no cerne da série.
No início da história, os habitantes de Westeros aproveitam um verão que já dura mais de uma década, mas a ilusão de estabilidade se desfaz assim que a morte do rei Robert Baratheon detona uma cadeia de eventos que leva a uma disputa sangrenta de poder entre as Grandes Casas do continente. Quebrando as convenções tradicionalmente maniqueístas da fantasia épica, não há heróis ou vilões claramente definidos, e esses personagens ambíguos e tridimensionais – mais próximos dos seres humanos reais que de personagens míticos – não economizam toda sorte de artimanhas na luta pelo trono e pela própria sobrevivência. É um mundo impiedoso e brutal, onde nem mesmo os nobres podem dormir tranquilos.
Assim como os personagens jamais estão seguros, o espectador também não pode contar nem mesmo com a sobrevivência de personagens com ares de protagonista. Começando pelo honesto e digno até demais Eddard Stark, senhor do reino do norte, decapitado ao final da primeira temporada para o horror do público, que o tomava como mais óbvio candidato a mocinho do seriado. E a contagem de corpos só aumenta com a avanço da narrativa – dos três irmãos Baratheon, a Casa detentora do Trono de Ferro no início da saga, resta apenas um ao final da segunda temporada. Viserys Targaryen, o último herdeiro varão da Casa que unificou os sete reinos e governou até ser deposta na rebelião liderada por Robert Baratheon, é morto pelo chefe tribal Khal Drogo – que também não demora a morrer.
Incluindo mutilações na conta, o número aumenta: o jovem Brandon Stark fica paraplégico ao ser atirado do alto de uma torre por Jaime Lannister, que por sua vez perderá a mão direita. O irmão mais novo deste último, Tyrion, um anão de intelecto brilhante, acaba ficando mais repulsivo aos olhos do habitantes de Westeros ao ter o nariz decepado durante uma batalha (na adaptação para a tevê o nariz permaneceu e o talho no rosto foi substituído por uma cicatriz mais delicada).
Nesse ambiente de insegurança generalizada, a única coisa com a qual se pode contar até certa medida é que todos os personagens que tentarem agir de forma moral – fazer a coisa certa – estarão condenados à derrocada. É praticamente a húbris de Westeros: abandonar o pragmatismo e tentar “ser bom”. Quem se arrisca a pesar demais as consequências éticas de cada ação acaba atropelado por aqueles que se abandonam à cobiça pelo poder, se movem por desejo de vingança ou simplesmente obedecem ordens sem questionar. Quanto mais impiedoso e concentrado nos próprios interesses, mais adaptado o personagem estará ao seu universo e maiores as suas chances de sucesso.
Um exemplo do fracasso do mocinho no universo de Game of Thrones é o destino já mencionado de Eddard Stark. Em sua primeira aparição na série ele decapita um infrator com a própria espada, ao invés de delegar a tarefa, estabelecendo um personagem que segue um código de honra rígido e inegociável. E é esse mesmo código de honra que o leva à perda da própria cabeça, quando ao descobrir o segredo da rainha Cersei Lannister (a saber: o pai de seus filhos não é o rei Robert, mas seu irmão gêmeo, Jaime Lannister), tenta salvar a ela e às crianças da fúria do rei e abre caminho para a própria ruína.
Daenerys Targaryen, personagem que inicia a narrativa como pouco mais que um joguete do irmão, sofre o primeiro grande revés ao tomar uma decisão moral – impedir o assassinato de uma curandeira. Como resultado, perde tudo que tem. Mas assim como ações e eventos não têm uma única causa anterior, sendo detonados por uma teia de inter-relações, em Game of Thrones a ruína pode ser o primeiro passo para a glória. Forçada a recomeçar, Daenerys obtém três dos dragões havia muito extintos e que fizeram a glória de sua Casa, e parte em direção à reconquista do Trono de Ferro.
Para fora do enredo, paira também outra nuvem de incerteza sobre a série: GRRM está com 64 anos e a série ainda não foi concluída. Projetada inicialmente como uma trilogia, As Crônicas de Gelo e Fogo (que já vendeu cerca de 15 milhões de exemplares no mundo todo) já está no quinto volume, e há previsão para mais dois. O intervalo entre a publicação de cada um deles está cada vez maior: entre A Guerra dos Tronos, o primeiro, e A Fúria dos Reis, o segundo, se passaram dois anos. Entre o quarto e o quinto, A Dança dos Dragões, foi preciso esperar sete longos anos. Há também a questão da sincronia com a adaptação televisiva, que avança a história a um volume por temporada – o autor já revelou aos produtores quem conquistará enfim o Trono de Ferro, mas não deu a menor indicação dos eventos que levarão a esse desfecho.
Para tornar a situação ainda mais aflitiva, os livros ficam mais extensos a cada lançamento – o terceiro e o quarto volume eram, originalmente, um único título – e o ritmo da narrativa foi se tornando lento e despreocupado, com longas digressões descritivas e momentos episódicos que (ao menos na aparência) não avançam a história nem enriquecem a leitura. GRRM tem grande poder imaginativo, mas não se trata exatamente de um bom estilista, capaz de produzir qualidade literária a partir desses trechos mais lentos.
E é nisso que reside um dos trunfos do seriado de tevê: forçados por imperativos de tempo e orçamento a uma concisão que escapa ao autor, os produtores se obrigam a fazer com que algo importante aconteça em cada cena dos episódios, imprimindo um ritmo mais acelerado à saga. Não é o caso de afirmar, todavia, que livros focados no desenvolvimento de personagem tenham se tornado um seriado de ação: ainda há muita conversa, como não poderia deixar de ser em um enredo tão repleto de conchavos e armações políticas, mas ela nunca é gratuita. Sem a gordura dos livros, sobra apenas a substância. Paradoxalmente, ao acelerar a narrativa, o seriado parece ir ainda mais fundo nos personagens, em suas motivações e idiossincrasias.
Mas GRRM garante estar trabalhando na maior velocidade possível, e ainda se tem muita história pronta a ser contada na tevê. O primeiro episódio da terceira temporada apresentou ao público alguns personagens queridos dos leitores: Mance Rayder, o “Rei Para Além da Muralha”, o falstaffiano Tormund Terror dos Gigantes e a desbocada Rainha dos Espinhos. A audiência foi tão expressiva que a HBO confirmou uma quarta temporada no dia seguinte à estreia.
No jogo dos tronos as opções são vencer ou morrer, sempre evitando tentar fazer a coisa certa. Nesta terceira temporada, quem parecer estar mais coberto de razão estará correndo os maiores riscos. Mas em última análise nada está garantido além da incerteza, e o melhor caminho para o Trono de Ferro – mais que intriga, coragem, inteligência ou pragmatismo – parece mesmo ser o acidente.
Daniel Pellizzari é redator do site do IMS.