Girimunho é um dos melhores filmes em cartaz no país. Sutil e discretamente inventivo, o longa de Clarisse Campolina e Helvécio Marins Jr. observa a vida cotidiana em São Romão (MG), pacato vilarejo às margens do São Francisco. Situa-se na fronteira entre o documentário e a ficção. A exemplo do que ocorre no também mineiro O céu sobre os ombros (2010), de Sérgio Borges, pessoas comuns (mas existe alguém comum?) representam diante das câmeras seu próprio dia a dia.
Sob a superfície aparentemente imóvel dos dias, sinais de mudança e inquietação vão surgindo aqui e ali: o celular, a televisão, o Orkut, uma moça que quer ir a Pirapora cursar enfermagem. Uma imagem inspirada condensa a sobreposição de tempos: uma velhinha (Maria Sebastiana Martins Alvaro) entoa uma cantiga imemorial, da época da escravidão, enquanto pedala numa bicicleta ergométrica.
Passado e futuro
Para realçar o contraste entre o passado e o futuro, ou antes seu caráter complementar, só há no filme personagens idosos e seus netos jovens. Ninguém na faixa dos 30 aos 70.
Outra circunstância feliz é a onipresença do rio, metáfora do tempo pelo menos desde Heráclito. Uma das cenas mais bonitas é aquela em que Sebastiana, depois de ter procurado em vão na cidade vizinha um irmão do marido morto, entrega suavemente às águas do São Francisco os pertences deste último: calça, camisa, chapéu, sapato. A mesma Sebastiana diz a certa altura: “O tempo não para, quem para somos nós”.
http://www.youtube.com/watch?v=T-mCGeBOlVA
O enfrentamento do passado com olhos do presente perpassa outro filme brasileiro recente, o belíssimo Mãe e filha, de Petrus Cariry. Uma moça que mora na cidade volta aos confins do sertão do Ceará para apresentar seu filho à mãe, que vive num vilarejo em ruínas, aparentemente fora do tempo. O detalhe é que o bebê está morto.
A equação entre velho e novo, tradição e invenção, ganha uma camada a mais no caso de Mãe e filha pelo fato de seu diretor ser filho do veterano Rosemberg Cariry, de Corisco e Dadá e A saga do guerreiro alumioso, entre outros.
http://www.youtube.com/watch?v=jzlBuf5fh5I
Mas Girimunho e Mãe e filha têm outra coisa em comum: apesar de terem rodado o mundo e conquistado prêmios em festivais, apesar do aplauso quase unânime da crítica, muito pouca gente os viu, vê ou verá (ao menos num futuro próximo). Girimunho entrou em cartaz no final de abril em apenas uma sala de São Paulo e outra de Belo Horizonte. Mãe e filha, que estreou quase secretamente há dois meses, é exibido em apenas um horário num único cinema paulistano. Em outras praças deve ocorrer o mesmo.
Destino semelhante é o de O homem que não dormia, do baiano Edgard Navarro, em que o passado “ronda como alma penada”, como na canção de Lulu Santos. Também ele é uma alma penada a ocupar as brechas vespertinas das salas de cinema.
Cinema clandestino
Para que um filme tenha relevância cultural e mesmo social, não precisa ser visto por milhões de espectadores. Basta que chegue aos corações e mentes de um punhado de pessoas, que por sua vez vão fazer essa semente germinar e seguir adiante. Mas o cinema, como atividade submetida à lógica econômica e às injunções políticas, precisa de público.
Não é saudável para um país, para uma cultura, que todo mundo veja sempre o mesmo filme, seja ele a mesma comédia besteirol ou o mesmo blockbuster recheado de efeitos especiais. Você – que (creio e espero) não faz parte dessa massa -só tem a ganhar se conseguir se esgueirar por uma fresta do mercado exibidor para vivenciar Girimunho, Mãe e filha ou O homem que não dormia, com o sentimento de quem executa uma ação clandestina.
* Na imagem que ilustra o post: cena do filme Girimunho.