Hollywood e além

Em cartaz

09.09.16
Hollywood Vermelha (Red Hollywood, 1996, remasterizado em 2013)

Hollywood Vermelha (Red Hollywood, 1996, remasterizado em 2013)

Algumas palavras sobre a mostra

Thom Andersen leciona na Escola de Cinema e Vídeo do California Institute of the Arts (CalArts), em sua amada cidade de Los Angeles, desde 1987. Ao longo desse período ele se tornou um dos críticos e cineastas mais importantes dos Estados Unidos. Seu trabalho consiste em estudos sobre as origens do cinema moderno, políticas da indústria cinematográfica americana, construções do imaginário urbano de Hollywood e espaços urbanos únicos. O processo de criação do cineasta, nascido em 1943, se comporta como uma perambulação na qual as ideias se acumulam e se transformam durante anos à medida em que tomam forma, sendo os mesmos tópicos revisados em sala de aula, em palestras, em artigos e em diferentes versões do mesmo filme. A mostra Hollywood e além: o cinema investigativo de Thom Andersen traz doze de seus catorze filmes, além de seis filmes de seus colaboradores, montando uma investigação sobre a memória cultural e a necessidade de sua preservação.

Andersen definiu sua temática no início da carreira e tem se mantido leal a ela durante toda a vida. Um local emblemático documentado de forma naturalista em Olivia’s Place (1966/74), antes de ser destruído pela revitalização urbana, complementa os fragmentos de músicas e imagens da época editados freneticamente em — ——- (Um filme de rock ‘n’ roll) (— ——- (The Rock ’n’ Roll Movie), 1967). A história do recém-restaurado Eadweard Muybridge, zoopraxógrafo (Eadweard Muybridge, Zoopraxographer, 1975, restaurado em 2013) descreve a genialidade de um homem obscuro através de sua principal criação artística e científica sobre o movimento do corpo humano. Hollywood Vermelha (Red Hollywood, 1996, remasterizado em 2013) declara a importância da revisão histórica de temas indevidamente abandonados, partindo de cenas de filmes antigos e entrevistas com cineastas e roteiristas praticamente descartados pela indústria hollywoodiana por questões políticas. Seu filme mais conhecido, Los Angeles por ela mesma (Los Angeles Plays Itself, 2003, também remasterizado em 2013) e os curtas Get Out of the Car (2010) e A trilogia de Tony Longo (The Tony Longo Trilogy, 2014) valorizam os marginalizados pela indústria (sejam eles atores, figurantes ou locações) e fazem com que seu cinema não permita que esqueçamos de que o mundo em que vivemos é o suporte do mundo apresentado na tela.

Estudos de ruínas convertidas em habitações privadas e públicas pelo arquiteto Eduardo Souto de Moura, em Portugal, apresentam, em Reconversão (2012), a preservação como uma ação não voltada para o passado, mas para a memória que se constrói dele. Juke – Passagens dos filmes de Spencer Williams (Juke – Passages from the Films of Spencer Williams, 2015) compila trechos dos filmes remanescentes de um dos primeiros cineastas negros independentes dos Estados Unidos, ressaltando suas qualidades documentais ao representar a cultura negra da década de 1940. Em seu longa mais recente, Os pensamentos que outrora tivemos (The Thoughts That Once We Had, 2015) – um diálogo com a teoria de cinema do filósofo Gilles Deleuze – Andersen condiciona o ato de preservar a serviço do presente e do que nele é construído ao chamar o cinema para a restauração da crença no mundo em que vivemos.

Marseille Après La Guerre (2015)

Marseille Après La Guerre (2015)

Seguindo o espírito colaborativo do cineasta, a mostra apresenta sete filmes envolvendo artistas que trabalharam com ele e compartilham conexões com a CalArts, uma escola vibrante para o cinema experimental e independente onde todos eles estudaram ou deram aula. Adam R. Levine (nascido em 1978) trabalhou em quatro filmes de Andersen, nas filmagens, montagens e remasterizações. Ele é representado na mostra com Koh (2010), um poema visual sobre a interação do homem e a natureza, filmado em 16 mm e processado a mão, que rememora um modo de viver artesanal.

Peter Bo Rappmund (nascido em 1979) trabalhou com Levine nas remasterizações e foi o cinegrafista de Reconversão. Os seus últimos dois filmes percorrem linhas naturais e artificiais em distintas paisagens míticas dos Estados Unidos. Em Tectonics (2012), as placas tectônicas que dividem os Estados Unidos do México retratam vestígios de uma guerra silenciosa. Em Topofília (Topophilia, 2015), o maior oleoduto norte-americano, que atravessa o estado do Alasca, registra a intervenção do homem em cenários monumentais. As jornadas são acompanhadas por paisagens sonoras construídas a partir da mixagem de efeitos e sons captados in loco que criam espaço para o espectador refletir sobre as implicações políticas das imagens.

Billy Woodberry (nascido em 1950) iniciou sua carreira no movimento “L.A. Rebellion” – homenageado em Los Angeles por ela mesma – que emergiu entre estudantes negros da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), na década de 1970. O trabalho colaborativo entre os estudantes viabilizou a realização de inúmeros filmes de baixíssimo orçamento, todos eles sobre a condição deteriorada dos trabalhadores negros e suas famílias, que posteriormente tornaram-se valiosos registros de uma época. O cineasta e professor universitário da CalArts, desde 1989, também deu voz à narração de Hollywood Vermelha e atuou em Get Out of the Car.

Mais de trinta anos após realizar seu primeiro longa-metragem, Woodberry lançou dois filmes que resgatam memórias culturais convenientemente esquecidas. O longa E quando eu morrer, não ficarei morto… (And When I Die, I Won’t Stay Dead…, 2015) retrata a vida do poeta americano Bob Kaufman (1925-1986), explicitando as dificuldades enfrentadas por um homem que não se curvava aos vícios racistas e políticos de um país. Dificuldades similares vividas pelo escritor e cineasta senegalês Ousmane Sembène, que trabalhou nas docas de Marseille no final da década de 1940 e relatou o comportamento colonialista impregnado nas relações de trabalho, são abordadas no curta Marseille Après La Guerre (2015).

Ross Lipman foi responsável pela restauração dos dois primeiros filmes de Woodberry quando trabalhou, entre 1999 e 2015, no UCLA Film & Television Archive, período durante o qual também realizou a restauração de Eadweard Muybridge, zoopraxógrafo e outros importantes filmes de diretores como Kenneth Anger, Charles Burnett, John Cassavetes e Orson Welles. A pesquisa que Lipman realiza durante o processo de restauração dos filmes é usada posteriormente pelo restaurador em palestras, performances e live cinema, nas quais imagens projetadas ao vivo são acompanhadas por sua fala de pesquisador.

E quando eu morrer, não ficarei morto… (And When I Die, I Won’t Stay Dead…, 2015)

E quando eu morrer, não ficarei morto… (And When I Die, I Won’t Stay Dead…, 2015)

Em 2011, Lipman concluiu a restauração de Film (1965), o único filme realizado pelo escritor Samuel Beckett, e transformou sua pesquisa em um documentário sobre a história desta produção obscura, intercalando imagens de arquivo e entrevistas recentes com pessoas nela envolvidas. Notfilm (2015) combina esses elementos com reflexões do próprio restaurador, que projetam questões sobre o passado, presente e futuro do cinema.

A mostra conta ainda com o filme mais recente de Thom Andersen, Um trem chega à estação (A Train Arrives at the Station, 2016), que estrou este ano no festival de Locarno. O curta é uma envolvente compilação de cenas cinematográficas de trens, começando com uma obra de Yasujiro Ozu e seguindo pela história do cinema por meio de Keaton, Sternberg, Hitchcock, Fassbinder, Jarmusch, Lang, Godard, Gorin, Hou, Akerman, e outros. Assim como todos os filmes da mostra, Um trem chega à estação apresenta o próprio cinema como um registro do desenvolvimento da sociedade humana, e uma obra em constante transformação.

Todas as cópias dos filmes provêm dos cineastas e de suas distribuidoras. Gostaríamos de agradecer aos cineastas Thom Andersen, Adam R. Levine, Peter Bo Rappmund, Billy Woodberry e Ross Lipman. Aos produtores Dennis Doros e Amy Heller (Milestone Films), Rui Alexandre Santos (Divina Comédia) e à distribuidora Curtas Metragens CRL. A Andrew Kim, montador e assistente de Thom Andersen, por criar a maioria dos DCPs legendados desta mostra. E em especial a Mila Zacharias, da Anamauê, pelo trabalho de produção que vem realizando conosco.

Get Out of the Car (2010)

Get Out of the Car (2010)

 

Brechas Remanescentes: Thom Andersen Discute Os pensamentos que outrora tivemos

Entrevista realizada por Aaron Cutler e Mariana Shellard e publicada originalmente na Filmmaker Magazine em 2 de junho de 2016.

 

Qual sua relação com Deleuze?

Thom Andersen: Eu estava escrevendo um livro de teoria do cinema quando foi lançado o primeiro dos dois volumes de Deleuze sobre o assunto. Tínhamos um ponto de convergência no interesse mútuo por Henri Bergson, um filósofo importante para discussões sobre cinema, e que oferece uma noção de um certo tipo de ilusão, a qual chamou de “o mecanismo cinematográfico do pensamento”. Minha abordagem sobre essa noção era consideravelmente ortodoxa, enquanto Deleuze era mais paradoxal. Para Deleuze a perspectiva de Bergson é de que o mundo é cinema, nada além de imagens viajando pelo espaço ao longo do tempo. Ocasionalmente essas imagens se encontram em “centros de indeterminação”, ou seres com consciência, momento em que mudam de natureza.

De início antipatizei com o trabalho de Deleuze, mas claro que achei que deveria lê-lo. No fim descobri algumas ideias bem interessantes e apreciei sua generosidade com outros críticos de cinema. Ele nunca entrou em disputa com algum predecessor – sempre havia algo que ele considerava válido e que contribuía para seu próprio trabalho (diferentemente dos Estados Unidos, onde David Bordwell pode escrever um livro inteiro refutando as ideias de Noël Burch, mesmo que suas próprias ideias venham de Noël). Também gostei da ênfase de Deleuze no neorrealismo – que usei para discutir o cinema americano independente no final de Los Angeles por ela mesma. Até mesmo com Hollywood Vermelha, Deleuze me ajudou com a ideia de que poderia haver uma diferença entre os filmes dos comunistas e os filmes dos progressistas de Hollywood, precisamente a mesma diferença entre o que ele considerou “naturalismo” e “realismo”.

Algumas pessoas notaram que Os pensamentos que outrora tivemos lida relativamente pouco com o segundo volume, A Imagem-tempo. Os trechos de Os pensamentos que discutme a ideia de “movimento do mundo”, com os movimentos de travelling de A Baía dos Anjos (1963), Ascensor para o cadafalso (1958) e Millennium Mambo (2001), vieram dele, assim como a última parte do filme, começando pela discussão de como “a loucura da conversa se torna a essência da comédia americana”, exemplificada por Chuva ou sol (1930) e Vamos à América (1935). Mas sempre gostei mais do primeiro volume, A Imagem-movimento. É mais simples de ler e, no fim das contas, não concordo com a afirmação de que a diferença fundamental entre o cinema clássico e o moderno é a substituição da imagem-movimento pela imagem-tempo. Existe certa verdade na declaração, porém acho que também haviam questões mais fundamentais em jogo.

 

Como Os pensamentos que outrora tivemos surgiu?

Andersen: Surgiu com uma disciplina que eu lecionava a cada dois anos na CalArts, chamada “Deleuze e o Cinema”. A disciplina exigia a leitura dos dois volumes de Deleuze sobre cinema e também assistir cenas de filmes sobre os quais ele escreveu, assim como cenas de outros filmes que ilustram suas ideias. Era uma aula de prática de cinema sobre a criação de imagens e sons, e muito do que discutíamos tinha a ver com os sistemas de classificação criados por Deleuze e a história contada nos livros. Um dos meus objetivos era sugerir aos alunos quais partes daquela história poderiam ser significativas para eles.

Em 2013, Sonja Bertucci e Andrew Kim [dois ex-alunos da CalArts, sendo que o segundo acabou editando Os pensamentos] gravaram a disciplina com a ideia de preservá-la, levando em conta que eu não tinha intenção de repeti-la e que aquilo poderia se transformar em um curso online. Por fim a CalArts deixou claro que não haveria dinheiro para reconstruir a disciplina em formato audiovisual, o que significava que havia um material gravado, mas nenhuma possibilidade de colocá-lo em um formato útil para alguém de fora.

 Notfilm (2015)

Notfilm (2015)

Nunca pensei em Os pensamentos como substituto para aquela gravação, mas tenho certeza de que o material foi uma das inspirações para o filme. Outra inspiração surgiu na virada de ano novo de 2013 para 2014, quando a Turner Classic Movies transmitiu uma maratona dos três filmes da série Era uma vez em Hollywood, junto com That’s Dancing! (1985) e alguns outros filmes com ideias similares. Esses filmes foram uma revelação para mim. Nunca fui grande conhecedor dos musicais clássicos da MGM. Dois números, envolvendo Carmem Miranda em Romance Carioca (1950) e Fred Astaire em Yolanda e o Ladrão (1945), eventualmente acabaram em meu filme.

Essas são algumas das razões, mas ainda assim não as considero suficientes. Acho que tive a ideia de juntar algo que pode ser chamado de Grandes Momentos na História do Cinema e trabalhei nisso até chegar a um ponto em que pensei “talvez isto seja um filme”. Seria de início um trabalho de quinze minutos, mas continuou crescendo até eu dizer “talvez isto seja um longa-metragem”. A estrutura tornou-se mais livre e menos definida do que em muitos dos meus filmes anteriores. Procurei criar uma espécie de obra aberta, na qual as pessoas poderiam criar e ver diferentes significados sem que eu limitasse essas possibilidades através de interpretações.

Mostrei Os pensamentos que outrora tivemos pela primeira vez no início de 2015 na CalArts, e depois fiz muitas revisões antes de exibi-lo novamente. As cerca de vinte primeiras projeções do filme foram versões prévias, que depois alterei. Enfim decidi que o filme estava pronto, mesmo tendo consciência de que havia algumas coisas que eu poderia mudar para melhorá-lo. Não havia nada de errado com o filme – eram apenas coisas que poderiam torná-lo melhor. Posso abrir mão dessas mudanças. É melhor considerar apenas o trabalho terminado.

 

Como você escolheu o título Os pensamentos que outrora tivemos?

Andersen: É poético, o que acho bom para títulos. Concluí que seria bom terminar com cenas de pessoas lendo em voz alta, começando por Bobby Sommer lendo um trecho do livro A Marcha Radetzky (1932) de Joseph Roth, no filme Evening’s Civil Twilight in Empires of Tin (2008), e a personagem Lily Carver (interpretada por Gaby Rodgers) de A Morte num Beijo (1955) lendo um soneto de Christina Rossetti que inclui o título do meu filme. Incluí essas cenas para dizer que a leitura é uma das coisas mais cinematográficas que se pode apresentar – talvez isso não seja Deleuze, mas acredito que está próximo de algumas ideias dele.

Essas cenas se encaixam particularmente na afirmação de Deleuze de que imagens são pensamentos. Existe sempre uma primeira vez em que assistimos a um filme, e quando o fazemos, os pensamentos estão sempre despertos. Para mim, é uma espécie de experiência única. O “nós”, no caso, inclui todos os que assistem a um filme. Pode-se dizer que o meu filme é uma série de pensamentos que começa no passado, que experimentamos antes. Então é uma questão de apresentar os pensamentos que outrora tivemos.

 

Você considera seu filme autobiográfico?

Andersen: Apenas no sentido em que é composto primariamente por momentos, de outros filmes, dos quais eu me lembro. Não há imagens em Os pensamentos das quais eu não goste. Realmente tentei juntar momentos importantes para mim – são cenas que continuei a relembrar depois de ter visto os filmes pela primeira vez.

Pode-se dizer que o filme remete às minhas origens como espectador e também como cineasta. É em grande parte um trabalho intuitivo, tanto que por um tempo eu não o compreendia como um filme (não estou certo de que hoje o vejo como tal, mas ao menos tenho mais conhecimento). Há nele referências de outros filmes que fiz. A cena lésbica na Sheats Goldstein Residence de Unleashed (1996) foi algo que deixei de fora de Los Angeles por ela mesma, por exemplo. É uma das casas modernistas que aparecem em Los Angeles por ela mesma – a casa de Jackie Treehorn (interpretado por Ben Gazzara) em O Grande Lebowski (1998) e também a locação de inúmeros filmes hollywoodianos. Tomei conhecimento de que havia aparecido em um filme pornô apenas depois de concluir Los Angeles por ela mesma.

Film (1965)

Film (1965)

Existem outros exemplos. A sequência do concerto dos Rolling Stones de Charlie is My Darling (1966) que aparece em Os pensamentos logo depois de Unleashed, poderia ter aparecido em um de meus primeiros filmes, — ——- (Um filme de Rock ‘n’ Roll) (1967). Existe um paralelo com Hollywood Vermelha na noção de Deleuze da “agonia final da imagem de ação”, mesmo que eu não inclua seus exemplos em minha interpretação. A dimensão histórico-materialista de Os pensamentos tem a ver com Hollywood Vermelha também, particularmente, a longa sequência que começa com o cerco de Leningrado (tirado do filme Bloqueio de Sergei Loznitsa [2006]) e que vai até a sequência de Maurice Chevalier e a libertação de Paris (de A Dor e a Piedade [1969]). Existem similaridades na discussão sobre política e história recente que aparecem em ambos os filmes.

 

Como a política em Os pensamentos se diferencia da política em Deleuze?

Andersen: Por todo o filme existem imagens que vão além de Deleuze. Algumas seções poderiam apenas ter existido em função dele, como a que discute a comédia através de diferentes exemplos: Harry Langdon, o Gordo e o Magro e os Irmãos Marx. Existem outras cenas nas quais primeiro gerei as imagens e depois procurei as ideias correspondentes na obra de Deleuze, se é que haviam.

O final do filme é parte Deleuze e parte minha. Todas as sequências iniciais de documentários que tratam das tragédias de Stalingrado, Leningrado, Hiroshima, Vietnã e Coreia do Norte representam outra coisa. Eu queria incluir o bombardeio da Coréia do Norte porque sentia que era algo que a maioria das pessoas não conhecia. Essas imagens são os registros de pior qualidade do meu filme – Korea: The Unknown War (1988) passou uma vez no PBS (Public Broadcasting Service/ Serviço de Transmissão Pública) e não fez outra aparição desde então. Não existe em DVD, peguei emprestadas as mesmas imagens de um filme norte-coreano sobre a guerra, que encontrei em uma fita de VHS degradada.

Senti, em determinado momento, que era uma resposta não apenas a Deleuze, mas também ao Histoire(s) du cinéma (1998) de Godard. Amo esse filme (algumas partes mais que outras), mas existe um certo provincialismo em sua história. É muito eurocêntrica. Moro em uma cidade localizada às margens do Pacífico nos Estados Unidos, onde o suposto Oeste é leste e o suposto Leste é oeste. Muitos japoneses, coreanos e filipinos moram aqui há bastante tempo. As calamidades históricas recentes no leste e no sudeste asiáticos carregam mais significado para nós do que para Godard, cujas referências são voltadas para a guerra europeia e o Holocausto.

Outra diferença entre meu filme e o de Godard é que enquanto o filme dele é melancólico, o meu é otimista. Meu título não é uma referência ao fim do cinema, mesmo que possa ser interpretado dessa maneira. Essa noção do cinema fracassando, terminando ou em necessidade de ressureição me parece uma ideia falsa.

Quanto às similaridades, posso dizer que ambos os filmes se aproximam mais da poesia do que da prosa, o que não é o caso na maioria de meus filmes. Los Angeles por ela mesma é um trabalho de prosa, por exemplo. As exceções seriam meus filmes mais antigos e, talvez, Juke – Passagens dos filmes de Spencer Williams. Existe um certo programa político em Get Out of the Car, mas antes de mais nada o filme é feito de imagens que incluí porque gostava do que mostravam, exceto, claro, as placas que informavam a destruição de marcos históricos e jardins públicos fechados.

Topofília (Topophilia, 2015)

Topofília (Topophilia, 2015)

Seus filmes, inclusive Get Out of the Car e Os pensamentos que outrora tivemos, expressam uma forte atração pela música pop. Porque?

Andersen: Muitos de nós têm afeto pela música pop. Isso se percebe na importância que os jornais deram à morte de Prince e David Bowie. É parte da cultura popular. Vejo a sequência dos Rolling Stones, em Os pensamentos, como uma extensão das comédias musicais da década de 1940. A história do músico Hank Ballard, relativamente obscuro e esquecido, e do muito mais popular Chubby Checker, ambos cantando “The Twist” com diferentes recepções, não apenas ilustra a ideia de Deleuze de que “uma pequena diferença na ação leva a uma grande diferença entre duas situações”, mas é também um importante e emblemático exemplo de como a cultura negra acaba sendo roubada e diluída nos Estados Unidos.

Os dois filmes em Os pensamentos que contêm cenas de pessoas ouvindo um disco de blues – Ghost World – Aprendendo a Viver (2001) e O Porto (2011) – são dois dos mais utópicos filmes dos últimos anos. Achei inspiradora a ideia de ouvir o velho Delta Blues como uma forma de acessar a utopia.

 

Como você caracterizaria as direções que seus filmes têm tomado?

Andersen: É engraçado. Meus últimos filmes, começando por Los Angeles por ela mesma, existiram porque eram o único tipo de filme que eu podia bancar. Não eram os filmes que eu queria fazer. Eu tinha muitas ideias que envolviam equipes de cinema, tempo com filmagens em locações e outros componentes mais caros do que os que tenho usado. No fim a existência desses filmes é uma espécie de acidente econômico.

O curta A trilogia de Tony Longo me veio a cabeça, inicialmente, durante o processo de remasterização de Los Angeles por ela mesma, quando percebi uma subtrama envolvendo um ator coadjuvante no filme The Takeover (1995), mais interessante que a própria trama do filme. Eu me interessei pelo ator Tony Longo que, mesmo interpretando um brutamontes em filmes de ação hollywoodianos, era simpático e vulnerável, e então acabei fazendo a trilogia contendo três papeis seus em filmes.

Juke – Passagens dos filmes de Spencer Williams era um filme que eu tinha em mente há muito tempo. Um dia estava conversando com o curador de filmes do MoMA [Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque], Josh Siegel, que mencionou um programa de filmes negros independentes que o museu estava fazendo para acompanhar a exposição das pinturas de Jacob Lawrence sobre a Grande Migração. Ele me perguntou se eu tinha alguma ideia de filmes para mostrar, e eu não tinha, porém tinha uma ideia de um filme sobre a obra do diretor Spencer Williams, que documentou a vida cotidiana dos negros de classe média no centro do Texas nos anos de 1940. Josh pôde encomendar Juke para a série e acho que também acabei fazendo Os pensamentos com o dinheiro.

Os pensamentos que outrora tivemos (The Thoughts That Once We Had, 2015)

Os pensamentos que outrora tivemos (The Thoughts That Once We Had, 2015)

Eu havia dito que nunca mais faria outro filme de compilação, mas nunca se deve dizer nunca. Não tinha antecipado nenhum de meus dois curtas recentes, California Sun (2015) e Um trem chega à estação. O primeiro começa com a regravação da música “California Sun”, dos Rivieras, pela Farmingdale Sound Machine. A banda fez um videoclipe com trechos de Los Angeles por ela mesma. Então, por que não propor um vídeo com clipes de outros filmes? Achei que seria interessante usar clipes de filmes da Califórnia – não todos de Los Angeles, mas também alguns que se passam em São Francisco – e fazer algo em que a relação entre as imagens e sons seria evidente, com uma pequena curiosidade surgindo aqui e ali. Gosto dele. Meu filminho entrega a mentira na lenda de que Annette Funicello nunca mostrou o umbigo nestes filmes praianos do final da década de 1950 e início de 1960.

Escrevi uma declaração para as exibições de Um trem chega à estação, que diz: “Ele surgiu do trabalho de Os pensamentos que outrora tivemos. Havia uma cena em particular que tivemos que cortar, cuja perda eu lamentei. Mostrava um trem chegando na estação de Tóquio de O filho único de Yasujiro Ozu. Decidi fazer um filme em torno dela, uma antologia de cenas de trem. Contém 26 planos e cenas de filmes entre 1904 e 2015. Possui uma estrutura seriada simples: cada sequência em preto e branco na primeira metade rima com uma sequência colorida na segunda metade. Desta forma, o primeiro e o último plano mostram trens chegando em estações no Japão, vistos de baixo para cima. No primeiro plano (O filho único), o trem se desloca para a direita; no último plano, se desloca para a esquerda. Um trem-bala substituiu a locomotiva a vapor. Depois de todos estes anos fiz outro filme estrutural, apesar desta não ser minha intenção original”.

 

Em que momento de seu trabalho você se encontra agora?

Andersen: Realmente penso que no momento terminei o trabalho com esses filmes. Tenho dois livros para escrever, portanto acho que não pensarei em filmes por um bom tempo. Depois, tentarei fazer alguns dos outros filmes que estão na minha mente há mais quinze anos.

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