Keith Jarrett pensa em sua arte (diário)

serrote

07.04.11

6 de abril, manhã

O dia amanhece esplendoroso no Rio, mas caminho na praia contrariado pela necessidade de ir a São Paulo. Viagem, mesmo as boas viagens, sempre me parece um transtorno pouco antes de partir. E o vício da reclamação faz esquecer que vou a São Paulo ver, pela primeira vez, Keith Jarrett. O ingresso foi comprado há mais de um mês, temendo que não houvesse concerto no Rio – achei também que poderia conciliar a ida à Sala São Paulo com os frequentes compromissos de trabalho. Em pouco tempo, o planejamento foi por água abaixo: Jarrett viria tocar no Rio, justo nessa semana não haveria trabalho em São Paulo  – e, logo saberia, não havia vaga em nenhum hotel com preço e qualidade decentes.  Havia apenas Keith Jarrett  e a incômoda evidência de que, nas próximas 24 horas, viveria exclusivamente em função dele. Me achei ridiculamente fanático e comecei a minimizar o concerto: preferia os standards, mas seria um longo improviso, que poderia ser chato, exagerado.  Enfim.

Tarde

É claro que já dediquei muito mais de 24 horas a ouvir Keith Jarrett, mas pela primeira vez fiquei sem almoçar por causa dele. O vôo das 14:20 é perfeito para não conseguir comer. Levei comigo o que estava no topo do Himalaia das leituras atrasadas: Chet Baker piensa en su arte, e achei que estava bem, muito bem, este Vila-Matas de alusão musical para a viagem. Entre casa a aeroporto, emails sem fim, uma lista de imagens que sumiu, contrato de colaboradores para assinar, detalhes na diagramação do livro.

Toda a expectativa de ler e trabalhar mais no hotel por água abaixo: o estabelecimento é perfeito para que não se fique no quarto. Na rua, não melhora: um trecho caído da Lorena, longe de tudo o que interessa. Resta o Vila-Matas e a “ficção crítica” de um homem que diz ganhar a vida como critico literário. Disperso-me chacinando porquinhos no Angry Birds. Sou um homem em preparativos.

Noite

Com o trânsito  infernal, devo levar 40 minutos até a Sala São Paulo. Sou pontualíssimo comigo mesmo, saio na hora planejada. Em menos de 15 minutos, já atravessei a Cracolândia e estou naquela Nova York plantada na Terra Devastada do Centrão. Uma hora até o início do concerto, que estranhamente continuo percebendo como um estorvo.

Sala lotada, bons e velhos amigos ansiosos, todos chegaram cedo para não correr riscos. O folheto distribuído dá as instruções necessárias para que o artista tenha a concentração que precisa. Rondam temores joãogilbertianos de que uma tosse mais encorpada ou um ranger mais estridente de cadeira bote tudo a perder. Cheguei a imaginar que meu celular tocava no meio do concerto e que, por isso, ele iria embora. Um de meus amigos tirou a bateria do telefone, acomodando-a no bolso do paletó oposto ao aparelho, para não correr riscos.

Na quinta fila, a esquerda, vejo que estou mais perto do que imaginava, com vista panorâmica para o teclado. O estorvo se dissipa aos poucos e, ansioso, posto no Facebook: “A poucos minutos de Deus, antes de Jarrett subir ao palco da Sala São Paulo”. Amigos curtiram e comentaram, mas Jarrett ainda levaria longos 20 minutos para entrar no palco.

Nocauteado pelo primeiro transbordamento de notas, os primeiros gemidos, o início de um embate furioso e afetivo com o piano, começo uma viagem sinuosa entre o mais abstrato e o irracional. E uma frase, lida de tarde no Vila-Matas, me vem inteira, quase perfeita: “A realidade é um movimento incessante do conhecido ao desconhecido”. No livro, o personagem discute que a literatura que vale a pena, hoje, deveria oscilar entre a opacidade de James Joyce e a narrativa perfeita de um Simenon. Jarrett é Joyce no improviso, Simenon ao redesenhar os standards. E os dois, simultaneamente, o tempo todo.

Os dois sets de 40 minutos foram, portanto, doses brutais de realidade, desta ida e vinda do conhecido ao desconhecido – detendo-se mais neste do que naquele. Mergulhando no teclado, nas cordas, Jarrett pensa sua arte no ato, jogando pro alto a distinção entre racional e irracional.  Acachapada, a platéia delira. Nem toda, é claro, pois alguns idiotas conseguem vencer o transe e o enlevo de Jarrett espocando flashes e, finalmente, conseguindo expulsá-lo de um bis que se anunciava transcendental ao ser aberto com “Miss Otis regrets”. Ainda assim, é difícil sair daquele mundo. Resgatado por amigos de uma quilométrica fila de táxi, passo a noite tendo flashbacks de uma onda que não passa.

7 de abril, manhã

No aeroporto, troco mensagens e emails com amigos que ainda vão passar pelo que passei ou que perderam a chance de ontem e não estarão sábado no Rio. Continuo firme com meu Chet Baker e, ao falar ao telefone com F., um dos melhores ouvidos para música que conheço, tenho o melhor resumo da noite: “O melhor é que ele está entregue mas não tem essa bobagem de ?receber santo’. Ele está é possuído por ele mesmo, radicalmente humano”.

A mesma humanidade que, fico sabendo ao entrar no taxi, produziu a chacina dos adolescentes na escola de Realengo. Tudo uma coisa só, do horror ao sublime, do conhecido ao desconhecido, Keith Jarrett pensando sua arte e atuando como uma pergunta reiterada, sem resposta possível.

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