O Blog do IMS selecionou trechos da entrevista que João Ubaldo Ribeiro deu em sua casa, no Rio, em 1999, para a edição dos Cadernos de Literatura Brasileira dedicada à sua obra. Foi o número 7 da série de CLBs, lançado naquele mesmo ano. O escritor respondeu a perguntas da equipe da publicação e de convidados como Haroldo de Campos e Sérgio Sant’Anna. Ela fala da importância que tiveram em sua vida Glauber Rocha, o jornalismo e seu próprio pai. Explica seu método de trabalho e comenta algumas de suas obras, como Setembro não tem sentido, Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro.
João Ubaldo Ribeiro em Itaparica. Fotografia de Edu Simões.
CADERNOS: Consta que o sr. começou a escrever um livro aos sete anos de idade, assim que soube da morte de Monteiro Lobato. Sua proposta seria continuar as aventuras de Narizinho. Como foi isso? Esse texto naturalmente se perdeu, mas ficou dessa experiência a disposição de se tornar escritor?
João Ubaldo Ribeiro: É, fui meio precoce. Mas olhe, eu não sabia que queria ser escritor naquela época. A ideia veio porque fiquei arrasado quando li a notícia da morte de Lobato na revista O Cruzeiro – naquele tempo eu conhecia o resto do país através de O Cruzeiro; na verdade essa revista era o nosso elo com o mundo. Pois bem, saiu a notícia e eu fiquei chocadíssimo vendo as fotos de Lobato no caixão, com aquele bigode branco. Eu nunca havia tido contato com a morte de alguém, digamos assim, próximo (eu lia muito as histórias do Monteiro Lobato). Então me veio uma vontade enorme de escrever como ele, continuar as coisas dele. Cheguei mesmo a começar uma continuação das aventuras da Narizinho, mas perdi. Eu escrevia plagiando livremente o Lobato, usando expressões que ele usava. Aliás, segui plagiando por um bom tempo – achava que não havia nada demais nisso. A propósito, desfrutei meus primeiros 15 minutos de glória em Itaparica graças a uma obra alheia. Eu era garoto e meu avô materno tinha uma enorme biblioteca. Uma das minhas amarguras foi não ter guardado aquela montanha de livros do meu avô; era uma montanha mesmo – eu chegava na casa dele e ficava fazendo alpinismo naquele monte de livros. Meu avô materno era tão obcecado por livros que chegava a roubar exemplares da biblioteca do meu pai, que ficava uma fera. Pois bem, um dia entrei na casa do meu avô e deparei com uma biografia entusiasmada do general Osório. Eu devia ter oito, nove anos no máximo e me tornei fã do general (aliás, sou até hoje). Li na tal biografia que Osório, nas horas vagas, era poeta, e o livro trazia um soneto dele. Eu gostei tanto do poema que o copiei e apresentei como sendo meu. Fiquei famosíssimo, até que fui desmoralizado. Eu tinha deixado a biografia por lá, dando sopa, e meu pai achou. Ou seja, minha primeira obra pública foi um poema do general Osório! Hoje, nem lembro mais do soneto. Depois disso, andei tentando umas obras próprias, sem muito sucesso. Lembro que entrei num concurso de uma loja de roupas aqui do Rio chamada Casa Valentim. Ela patrocinava um programa radiofônico de interesse juvenil — não sei se já disse, mas eu ouvia muito rádio naquele tempo – e certa vez promoveu um concurso de quadrinhas. Tudo o que o regulamento pedia era que a quadra fosse sobre a própria Casa Valentim. Disposto a tirar o primeiro lugar, fiz uma quadra terrível, que dizia alguma coisa assim: “Roupas, não as quero/ de uma casinha chinfrim/Roupas, só as quero/ da Casa Valentim”.
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CADERNOS: E conseguiu ganhar?
João Ubaldo Ribeiro: Nada! Lembro que semanas depois de eu ter enviado a quadrinha, o programa começou a anunciar os vencedores. Deram um caminhão de menções honrosas – e eu não ganhei nada. Fiquei indignado, achava as outras quadras medíocres. Essa foi a minha primeira obra. Não teve sucesso de crítica nem de público.
Haroldo de Campos: Numa cena de Viva o povo brasileiro [de 1984], você mistura Homero com entidades iorubás. Gostaria que falasse do seu relacionamento com a épica grega.
João Ubaldo Ribeiro: Bem, eu li Homero pela primeira vez quando tinha mais ou menos 10 anos de idade na biblioteca de meu pai — e até hoje leio e releio. Apesar do trecho citado ser uma evidente paródia de Homero, já aconteceu de muitas pessoas me elogiarem por aquele capítulo de Viva o povo como se tudo fosse invenção minha. Aquilo é Homero; você pode, no máximo, me cumprimentar pela homenagem. Mas é claro que nunca falei para aquelas pessoas que eu tive apenas o mérito de citar Homero.
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CADERNOS: Ainda em relação às suas primeiras leituras, seu pai proibia que o sr. lesse coisas mais leves – gibis, por exemplo?
João Ubaldo Ribeiro: Ele não gostava muito, mas com o tempo se resignou. A questão é que eu sempre fui um leitor voraz. Lia tudo o que me caía nas mãos. Hoje só não continuo assim porque ando com problemas de visão. Aliás, tenho pavor de ficar cego. Você sabe que há uma tradição de autores cegos, a começar pelo patrono de todos nós, Homero.
CADERNOS: Não fosse isso, o sr. continuaria um “leitor voraz”?
João Ubaldo Ribeiro: Não quero ser radical, mas, apesar de ainda ter prazer em escrever, se eu pudesse passaria o resto da vida lendo. Sou um recém-chegado à internet, mas quando estou navegando e vejo aquele mundo de livros à disposição me sinto agoniado porque gostaria de ler tudo.
CADERNOS: Muitos escritores, a essa altura da vida, preferem reler.
João Ubaldo Ribeiro: Eu releio muito – três, quatro, incontáveis vezes.
CADERNOS: De volta à sua formação, foi seu pai que o iniciou também no jornalismo, levando-o a trabalhar numa redação aos 17 anos de idade. Até então, qual vinha sendo o seu relacionamento com a imprensa? Havia, de sua parte, um fascínio pela profissão de jornalista?
João Ubaldo Ribeiro: Bem, eu lia jornais e revistas, como já disse, mas não tinha propriamente um fascínio pela profissão de jornalista. Claro que tenho até hoje muito apreço por essa carreira, que me deu meu primeiro emprego. Mas é só isso.
CADERNOS: Neste caso, por que o sr. foi trabalhar em jornal?
João Ubaldo Ribeiro: Meu pai me levou para trabalhar em jornal porque eu escrevia bem. De certa maneira, ele acertou: até hoje eu sou, de algum modo, ligado ao jornalismo.
CADERNOS: Embora nunca tenha gostado de fazer reportagem, por exemplo, o sr. ascendeu rapidamente no jornalismo, alcançando postos de comando em veículos da grande imprensa baiana. Ao que o sr. atribui isso? Sua inexperiência como repórter acabou compensada por uma vocação natural para a escrita e uma cultura incomum, considerando sua idade na época?
João Ubaldo Ribeiro: Eu fui um péssimo repórter porque era tímido demais. Mas, como falava inglês bem, era sempre designado para entrevistar personalidades que se expressavam nesse idioma. Outra qualidade que me ajudou a subir nos jornais em que trabalhei: eu escrevia muito rápido. Tinha bom texto e era ligeiro: quem trabalha na imprensa sabe o quanto isso é importante na redação. Além do mais, eu trabalhava muito. Fazia sozinho quase o jornal inteiro.
CADERNOS: Como o sr. conciliava a sua vida de jornalista com a de escritor? Havia um sentimento de culpa por não estar se dedicando à literatura?
João Ubaldo Ribeiro: Eu não via muita distância entre uma coisa e outra. Eu vivi o tempo áureo dos suplementos literários — dirigia um, Glauber Rocha outro. O jornalismo naquele tempo era uma atividade romântica, boêmia, cheia de artistas. Vivíamos isso intensa e até irresponsavelmente. Imagine que eu e Glauber tínhamos um amigo que resolveu lançar uma coletânea horrorosa de poemas; para promover o livro, eu e Glauber decidimos fazer o seguinte: um escrevia elogiando e outro desancando o poeta. Foi um sucesso. Depois de aprontarmos coisas como essa, íamos todos para a porta da Livraria Civilização para dar risada e conversar sobre literatura, cinema, artes. Outra irresponsabilidade: inventar matéria. Houve uma época em que Glauber era editor de polícia do jornal. Ligava para o Instituto Médico Legal da Bahia e ficava possesso quando diziam que ninguém tinha morrido. “Cidade atrasada!”, reclamava, aos brados. “Não acontece nada aqui, caramba! Ubaldo, me ajuda, tenho que fechar essa droga.” E eu: “Deixa comigo. Do correspondente em Nova York. Delinquência juvenil em Manhattan”. E tome matéria inventada.
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CADERNOS: Embora não renegue Setembro não tem sentido (1968), o sr. costuma dizer que o seu primeiro romance é um livro com todos os cacoetes de uma obra de juventude. Quando o sr. percebeu que era preciso escrever alguma coisa para se firmar definitivamente como escritor? E como foi o processo de elaboração de seu o primeiro romance?
João Ubaldo Ribeiro: Eu sou uma invenção de Glauber Rocha. Glauber era dois anos mais velho do que eu. Nós nos conhecíamos desde a época em que cursávamos o clássico, no Colégio Central, mas nos tornamos amigos para valer na Faculdade de Direito. Ele me adotou. Dizia coisas a meu respeito que depois eu tinha que me virar para comprovar. Ele inventou, por exemplo, que eu entendia de literatura americana. Ora, eu falava inglês muito bem porque desde pequeno decorava 50 palavras do dicionário por dia e tive a sorte de morar num prédio cheio de garotos americanos, com quem eu falava inglês o tempo todo. Mas literatura americana eu conhecia pouco. Pois Glauber espalhou na faculdade que eu era especialista e tive que ler Hemingway, Faulkner, Fitzgerald como louco para dar conta da fama. Pois bem: com essa mania de decretar coisas, Glauber passou a cobrar cada vez mais que eu escrevesse. Passava na minha casa e perguntava: “Quero saber o que você, que tem uma responsabilidade com o Brasil como escritor, vem fazendo; quero ler. O que é que tem aí?”. Eu vivia preocupado, inseguro, sem saber se tinha vocação mesmo para a literatura. O que Glauber fazia era me estimular. Quando contei que estava pensando em escrever um romance que se passava na Semana da Pátria ele me incentivou muito. Comecei o livro e dava os capítulos para Glauber ler. Ele fazia pose enquanto lia e murmurava: “Demais… Genial…” Era o máximo, para mim, mesmo sabendo que ele estava exagerando. Inflava o meu ego. Às vezes, fazia críticas também. Lembro que cada capítulo de Setembro não tem sentido tinha uma epígrafe. Ele começou a ler aquilo e foi balançando a cabeça. “Não, não”, dizia. E eu: “O que foi, Glauber?”. “Que negócio é esse aqui, pô!?” “Epígrafes, Glauber. O Stendhal usa, não sei mais quem usa”. “Frescura, Ubaldo, tira isso daqui, frescura”. Tirei na hora e até hoje não uso esse recurso: no máximo, ponho uma só epígrafe, inventada por mim mesmo, no começo de cada livro. Essa é uma das grandes faltas que Glauber Rocha faz: a capacidade de agitar culturalmente. Ele distribuía papéis para todos nós e cobrava esses papéis. Ele achava que havia espaços a serem preenchidos e nos convocava para preencher. Era um homem extraordinário, amigo, amigo mesmo. Nós nos falávamos tudo. Glauber participava da minha vida o tempo todo. Uma vez ele chegou em casa e eu tinha brigado com minha mulher, a primeira. Eles eram amicíssimos. Numa hora em que ela saiu um pouco ele me disse: “Você dessa vez tem razão, mas olhe, ela não pode saber que eu acho isso. Se a mulher do amigo fica contra a gente, está tudo perdido. Então, quando ela voltar, eu vou esculhambar você, está bem?” Quando minha mulher voltou, Glauber começou: “Ela tem razão, Ubaldo! Caramba! Como você pode fazer isso?” Sinto muita falta de Glauber. Um dia, em Itaparica, eu encarnei Glauber. Nelson Pereira dos Santos estava comigo e ficou até com medo. Eu falava como Glauber, me mexia como ele. E Nelson: “Ubaldo, melhor parar com isso, melhor parar com isso”.
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CADERNOS: O sr. tem intenção de escrever um livro de memórias?
João Ubaldo Ribeiro: Não, eu certamente não escreverei um livro de memórias no sentido convencional do termo. Eu não tenho paciência para isso.
CADERNOS: Do ponto de vista temático, Setembro não tem sentido é um romance de geração; no plano estrutural, o sr. optou por uma narrativa fragmentária. Esta foi uma tentativa de adequar conteúdo e forma — uma característica marcante nos seus romances posteriores — ou naquela época o sr. não teve tal intenção, tudo resultando apenas de propostas isoladas: de um lado, o desejo de, digamos, contar a história de sua geração e, de outro, o esforço em inovar, adotar uma estrutura não convencional?
João Ubaldo Ribeiro: Realmente eu tinha essa intenção: fazer uma coisa nova, que mostrasse todas as bossas, que mostrasse que eu sabia, que eu era do ramo — coisa de adolescente mesmo. Nessa fase a gente pensa que pode tudo, que vai reformar o mundo.
CADERNOS: A propósito desse romance, por que o sr. decidiu trocar o seu título original, A Semana da Pátria? Setembro não tem sentido é mesmo um título sugerido pelo editor José Álvaro?
João Ubaldo Ribeiro: Não, não por José Álvaro. Quem me chamou a atenção para trocar o título foi um editor dele, João Rui Medeiros. Um dia ele me telefonou e disse que eu deveria trocar o título do livro por dois motivos: primeiro, porque estávamos em plena ditadura militar e os milicos poderiam achar que o nome do romance era uma provocação; e em segundo lugar, porque ele, João Rui, tinha passado numa livraria e visto o livro A luta corporal, de Ferreira Gullar, na seção de esportes — e estava com medo que A Semana da Pátria fosse parar na prateleira de Moral e Cívica! Eu concordei, mas nunca mandava o novo título. Naquela época, eu era fanático por pôquer; numa noite, estava jogando e alguém chegou com um telegrama da editora me dando 24 horas para bolar o novo título do romance. Não sei como nem por que, mas foi no meio daquela jogatina, todos bêbados a altas horas da noite, que me veio o título Setembro não tem sentido.
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CADERNOS: Sargento Getúlio (1971) representa não apenas um salto em relação a Setembro não tem sentido como continua sendo um dos momentos mais inspirados de sua ficção. Dado o seu tema e sua linguagem, seria adequado falar que o livro representa uma espécie de acerto de contas do sr. com a narrativa de matriz regional brasileira? Noutras palavras, o sr. redigiu Sargento Getúlio sob a sombra de Graciliano Ramos e, principalmente, de Guimarães Rosa?
João Ubaldo Ribeiro: Não. O Sargento começou porque eu queria saber se era romancista mesmo. Eu tinha ficado muito impressionado quando fui convidado por Nelson de Araújo para publicar em livro um conto que tinha saído num suplemento e ele disse para mim: “Até agora só li isso de você, Ubaldo, mas você não é galinha de um ovo só, é?” E eu, mais do que depressa: “Não, claro que não. Estou escrevendo umas coisas novas aí”; ele acreditou e me incluiu no livro Panorama do conto bahiano (1959). Pois essa história não saía da minha cabeça. Quando publiquei Setembro não tem sentido, pensei: “E agora? Será que eu sou romancista de um romance só?” Precisava provar para mim mesmo que não era. Comecei o livro meio atrapalhado, não sabia o que ia fazer. Hoje existem todas essas interpretações, o romance é isso, o romance é aquilo, mas quando comecei eu não sabia de nada, não sabia aonde aquilo iria parar.
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CADERNOS: O sr. nunca fez anotações dessas linguagens típicas das regiões que aparecem em seus livros?
João Ubaldo Ribeiro: Não, nunca fiz. No caso de Sargento Getúlio, o máximo que eu fazia era perguntar para minha mãe. Coisas do tipo: o que é a gente comia em Sergipe? Vocês sabem, a história se passa em Sergipe, onde eu vivi, e tem a ver com um episódio acontecido com meu pai. Minha mãe às vezes se aborrecia com as perguntas: “Pra que é que você quer saber isso agora, meu Deus?” Mas são coisas que tomam um tempo imenso do escritor. Como é aquela palavrinha? E alguém pode esclarecer na hora.
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Haroldo de Campos: Você surpreende as pessoas que o conhecem pelo domínio que tem de temas inusitados, com suas respectivas faixas vocabulares. Qual o papel de seu pai, conhecido, como se sabe, em outras instâncias de sua formação, na aquisição desse tesouro vocabular que você exibe?
João Ubaldo Ribeiro: Seguramente ele teve um papel fundamental. Meu pai nunca dizia o que uma palavra significava, estava sempre me aconselhando: “Não sabe? Vá ao dicionário”. Com isso, eu passei a valorizar muito cada palavra. Eu não suporto um “maravilhoso” que serve para tudo. Eu geralmente quero ser muito preciso no uso de determinada palavra. É quase uma compulsão: eu tenho vontade de usar a palavra certa. E o leitor, você sabe, não perdoa quando descobre que sabe mais que o autor. Quando um escritor está construindo um universozinho elaborado, digamos assim, artificial, ele está construindo um edificiozinho – se dá uma escorregada num tijolo, aquilo pode contaminar o livro inteiro. Se você está escrevendo um livro que tem um personagem médico e coloca o fígado do lado esquerdo, ou erra na hora de descrever a cavidade abdominal, adeus. Isso pode quebrar toda a mágica do seu romance. O narrador hábil vai introduzindo o leitor numa série de códigos e não pode trair esses códigos. É por isso que loucos como eu, Zé Rubem [Rubem Fonseca], ficam desesperados se não conseguem encontrar a palavra exata. E o Zé Rubem procurando o nome daquele patê, não é outro, é aquele; o Jorge Amado telefonando para mim querendo saber o nome do nó que se dá na corda de um saveiro. Alguém poderia dizer: “Põe nó e pronto”. Mas o Jorge nunca aceitaria: “Mas tem um nome, aquele nó, do saveiro…” Não quer dizer que o Jorge seja especialista nisso, ou o Zé Rubem em patê, ou eu em protozoários. Se fosse assim… Há uma cena de homossexualismon’O sorriso do lagarto, então teve gente que falou: “Como você sabe?” E eu: “Ah, treinei com uns amigos!” O que é que eu ia responder pra esse tipo de pergunta? Ora, não é porque eu nunca pari que não posso descrever uma cena de parto. É tudo uma questão de você encontrar a palavra certa, as palavras certas.
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CADERNOS: O encontro do sargento Getúlio com Luzinete pode dar a impressão ao leitor de que existe alguma possibilidade do personagem-título do romance abandonar a ideia fixa de cumprir sua missão – o que não ocorre. O amor, as relações amorosas, de um modo geral têm pouca força de transformação em suas obras. Será esta uma coincidência ou uma refletida visão pessimista dos relacionamentos humanos?
João Ubaldo Ribeiro: Não sei. Mas com relação amulheres na minha obra, eu lembro que um dia, quando eu estava começando, uma professora amiga, Zilma – casada com Antônio Barros, que foi meu professor de português – virou para mim e disse: “Engraçado, estava lendo os teus contos e não tem mulher neles”. Fiquei com aquilo na cabeça: “É verdade, não tem mesmo. Mas existem mulheres na vida! Por que elas não aparecem nos meus textos?” A partir daí, eu mudei. Fui me educando, digamos assim, para incorporar as mulheres aos meus textos. Consegui e cheguei a escrever, de encomenda, na Alemanha, o conto “O estouro da boiada”, aquela história de uma família com sete mulheres, mulheres fortes.
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CADERNOS: O sr. já se aventurou pela tradução de poemas e/ou peças teatrais?
João Ubaldo Ribeiro: Não. Eu detesto traduzir. Traduzi Sargento Getúlio e Viva o povo para não ter surpresas com as edições. Não é vaidade, mas é que, só pelo fato de ser estrangeiro, o tradutor muitas vezes acha que eu não tenho o domínio completo da língua. No Sargento, por exemplo, tinha uma passagem em que eu falava de ponto fulminante em vez de culminante; como em inglês é possível fazer o mesmo trocadilho, eu pusfulminant point. Pois aí o editor mudou para culminant. Liguei para lá e disse que queria fulminant mesmo. Arrumaram, mas foi só porque eu fiquei em cima. Ora, no caso do inglês pelo menos eu digo a você que sei mais esse idioma do que a maioria dos americanos. Eu falo isso estatisticamente: não tenho, claro, melhor inglês do que o americano culto, mas eles não são maioria.
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CADERNOS: O sr. confessa que a falta de planejamento é uma característica de sua vida e também de sua literatura. Chegou mesmo a dizer que não é o sr. que escolhe seus livros, são eles que o escolhem. Como acontece o seu processo de criação? O sr. já disse várias vezes que senta, escreve o título, depois a epígrafe e assim vai. Mas, nesse momento, o sr. já tem a coisa plenamente articulada na cabeça?
João Ubaldo Ribeiro: Geralmente eu penso que sim, mas existe um período anterior, de duração variável, em que eu converso muito com minha mulher, com meus amigos, fico contando a história para eles – na realidade, acho que fico contando para mim mesmo, é como se eu quisesse estruturar a história na minha cabeça. Como chega essa hora, como eu sei que ela chegou, não tenho a menor ideia. É como o momento do sono. Você nunca lembra do momento preciso em que caiu no sono. De qualquer maneira, durante o processo, essas coisas mudam. N’O sorriso do lagarto, por exemplo, eu pensava que o João Pedroso era homossexual. Mas a história ia passando e nada do João Pedroso se revelar. No fim, eu me rendi: não era ele o homossexual da história.
CADERNOS: Um exemplo acabado de insubordinação do personagem.
João Ubaldo Ribeiro: Isso acontece mesmo. Eu tenho brigas com meus personagens. Também tenho brigas com o Pequeno Ubaldo… Eu sou composto de dois: o Grande Ubaldo, um sujeito boa gente, relaxado, e o Pequeno Ubaldo, que está sempre me cobrando. Estou aqui e ele começa: “Como é? Quer dizer que não trabalhou hoje, hein?…”. Um dia, o pessoal de casa tomou um susto porque eu comecei a berrar com o Pequeno Ubaldo e saí correndo atrás dele pelo corredor. Abri a porta e ele me deixou em paz por um mês. Não sei se é por influência do Pequeno Ubaldo, mas até hoje eu tenho minhas metas quando estou escrevendo um trabalho. Quando estou mergulhado num livro, preciso escrever três laudas por dia. Sem direito a desconto. Ou seja: não adianta fazer seis hoje e nenhuma amanhã.
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Sérgio Sant’Anna: Já tive oportunidade de bater uns papos com você e achei sua conversa saborosíssima e com grande afinidade com os seus livros. Dentre os que eu conheço, particularmente Viva o povo brasileiro. Eu sei que a escrita é muito mais trabalhosa, mas você solta a voz quando escreve?
João Ubaldo Ribeiro: É difícil dizer. Mas Jorge Amado, por exemplo, que é muito meu amigo e sempre me ensinou coisas, me disse um tempo atrás: “Compadre, estou ficando mais velho e está cada vez mais difícil escrever”. Eu tenho sentido um pouco esse fenômeno também. Você pode atribuir isso ao fato de que, sendo um escritor conhecido, está mais exposto, tem mais responsabilidade. Não deixa de ser verdade: nesse ponto, tem sempre gente querendo ver você dar um escorregão. Eu nunca fui um jovem escritor, sabe? Passei de desconhecido a medalhão… O fato é que aquilo que o Jorge falava está acontecendo comigo agora. Escrever hoje é mais difícil, mais penoso. Mas eu procuro não me conter muito, não me frear muito. Tento o máximo que posso liberar a censura.
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CADERNOS: De tudo o que foi dito e escrito a respeito de Viva o povo brasileiro, parece unânime a ideia de que o romance constitui uma espécie de tentativa de compreender o processo de formação da identidade nacional. Não deve ter sido este porém o principal motivo do interesse dos leitores dos diversos países em que o livro foi traduzido, às vezes com tiragens surpreendentes como na Suécia, onde Viva o povo saiu com 100 mil exemplares. Ao que o sr. atribuiria o êxito do livro no exterior?
João Ubaldo Ribeiro: Na verdade, o país onde meus livros têm maior aceitação é a Alemanha. Há uma explicação para o sucesso dos meus romances no exterior que me parece parcial – para muita gente seria absoluta, para mim é parcial: lá fora, todo mundo acha que literatura brasileira deve ser exótica. Acho que eles veem um livro do tipo Viva o povo como exótico. Mas eu não posso fazer nada: não sou parisiense, não posso escrever sobre Paris, só posso escrever sobre a Bahia ou sobre o Rio. Mas eu escrevo o livro que sai, não fico tentando ser exótico para impressionar os estrangeiros.
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Sérgio Sant’Anna: No ano de 1998 foram organizados vários eventos em torno do movimento antropofágico no Brasil. Em Viva o povo brasileiro, há cenas de antropofagia explícita. Você considera-se parente dos modernistas (ou dos pós-modernistas) ou acha todas essas classificações uma besteira?
João Ubaldo Ribeiro: Eu acho, de um modo geral, todas essas classificações uma besteira. Acho inclusive que muita gente fala de antropofagia e não entende do que está falando. Na Alemanha, fui brincar com essa história de que somos antropófagos e uma moça ficou morrendo de medo de mim. Já na Holanda eles adoraram o trecho em que eu digo que a carne de holandês é melhor que a dos portugueses – um pouco gordurosa.
CADERNOS: Qual o lugar da religião em sua vida?
João Ubaldo Ribeiro: Eu sou católico. Sou culturalmente católico. Mas não sou praticante. Eu não posso me considerar um católico pleno porque em primeiro lugar sou divorciado e casado novamente. E não obedeço a Igreja – não suporto religião organizada.
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CADERNOS: E o candomblé?
João Ubaldo Ribeiro: Minha família era muito preconceituosa. Quando eu era menino, ainda peguei escravos na fazenda do meu tio-avô. Não eram escravos legalmente, claro, mas com certeza nem se cogitava em pagar salário para aqueles empregados negros. Quer dizer, eu não podia me misturar com “gentinha do candomblé”, entende?
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CADERNOS: Os cineastas, desde Glauber Rocha, estão entre os mais entusiasmados admiradores de seu trabalho, ao qual atribuem frequentemente uma enorme vocação cinematográfica. No entanto, só Sargento Getúlio chegou às telas dos cinemas (em 1983, sob direção de Hermano Penna). Mesmo que se considere as adaptações para a tv, sua obra tem sido menos divulgada por esses meios do que seria razoável supor. Por que isso acontece? O sr. resiste à venda dos direitos de adaptação de seus romances e/ou contos para o cinema e/ou tv?
João Ubaldo Ribeiro: Glauber, como você disse, achava mesmo meus livros muito cinematográficos. Ele vivia dizendo: “O roteiro tá aqui, pô! Tá pronto!”. Mas se meus livros não foram mais adaptados é porque não me fizeram boas propostas. Eu só resisto a uma adaptação quando acho que não recebi uma boa proposta. Não faz muito tempo, vendi os direitos de filmagem de Viva o povo brasileiro, por exemplo, que deve ser dirigido por André Luis Oliveira, porque achei que estavam me pagando bem e o diretor é competente, gosta muito do livro.
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CADERNOS: O sr. tem predileção pelo romance ou pelo conto?
João Ubaldo Ribeiro: Eu não sou contista. Escrevo histórias curtas sem ter a pretensão de contribuir para o gênero. Já os meus romances eu considero mais marcantes, digamos assim. Estou agora pensando em escrever um livro de contos chamado Noites lebloninas. Imagino criar um personagem que vai percorrer todas as histórias. Mas eu não tenho a pretensão de ser um artista do conto. E, como disse, não é porque considere o conto um gênero menor. Mas algo me move em direção ao romance.
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CADERNOS: Para um escritor que preza muito a liberdade criativa, ter o compromisso de escrever uma crônica por semana não incomoda?
João Ubaldo Ribeiro: É chato, muito chato. Mas é um trabalho, e por isso eu não deixo para a última hora. Na verdade, eu posso entregar meu texto até quinta-feira, mas sempre entrego na quarta, mando por e-mail. Houve uma época em que eu escrevia num domingo, para publicar no outro. Só que ficava muito defasado. Como cronista, eu me prometi algum dia que jamais escreveria sobre a famosa falta de assunto. Para isso, desenvolvi um truque, que é me expor demais, colocar a minha própria vida na crônica, fantasiando muito, claro; você sabe, o poeta é um fingidor. Mas é um truque que tem dado certo. Na verdade, eu fui um dos primeiros a escrever em primeira pessoa na Bahia. Na época, isso era considerado até deselegante.
João Ubaldo Ribeiro em Itaparica. Fotografia de Edu Simões.
CADERNOS: Como foi sua experiência de escrever crônicas para um jornal alemão, o Frankfurter Rundschau? Temos curiosidade de saber a reação dos leitores, já que na Alemanha eles não estão muito acostumados com a crônica, ao contrário do público brasileiro.
João Ubaldo Ribeiro: Primeiro, o jornal insistiu muito para que eu escrevesse. Mas quando comecei, eles estranharam. “O que é isso? Escreva coisas mais sérias”. Eu não liguei. Pensei comigo: “Ótimo que não gostem, assim desistem”. Só que o público gostou e eu comecei a receber cartas e mais cartas. O jornal então foi se acostumando a ponto de partir do pessoal de lá a ideia de fazer um livro com aquelas crônicas.
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CADERNOS: O que o sr. lê no período em que está escrevendo um novo romance ou um conto?
João Ubaldo Ribeiro: Procuro não ler. Se eu começar a ler uma coisa muito boa, daqui a pouco vou estar escrevendo igual, cometendo, sem perceber, um plágio horroroso.
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CADERNOS: E poesia, o sr. lê?
João Ubaldo Ribeiro: Gosto muito, por exemplo, de Jorge de Lima, de Castro Alves, João Cabral, Cruz e Sousa e Álvares de Azevedo.
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CADERNOS: A propósito, pode-se dizer que o sr. é escritor profissional desde os bancos da escola, quando fazia redações para os colegas, recebendo em pagamento um pastel e um refrigerante. Depois disso, quando cursava o clássico, em Salvador, que correspondia ao atual segundo grau, teve aulas de português com o já mencionado professor Antônio Barros, um homem ilustrado cuja influência o sr. confessa ter sido muito importante em sua preparação para a carreira literária. O que o sr. pode nos dizer desses anos de formação?
João Ubaldo Ribeiro: Antônio Barros foi mesmo muito importante. Era um homem idiossincrático, engraçadíssimo, espirituoso, dono de um humor mal-humorado, irônico. Ele dava uma aula desabusada, mas brilhante, que ia nos apresentando à verdadeira literatura. Ele gostava do que eu escrevia — e olhe que era um professor rigorosíssimo. Lembro de uma vez em que um colega estava reclamando porque tinha tirado quatro e o Barrinhos, para acabar com o assunto, disse para ele: “Olhe, você devia levantar as mãos para o céu. Pois se eu dei sete para esse cara aqui (era eu), quatro para você é muito”.
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CADERNOS: Tomando isso como parâmetro – a esperança, a resistência – o sr. diria ao jovem candidato a escritor que continue?
João Ubaldo Ribeiro: Em primeiro lugar, desaconselharia esse jovem candidato a escritor a continuar; sugeriria que desistisse enquanto é tempo. Mas se isso for mesmo impossível, eu diria: então está bem, persista, vá em frente, leia muito, todas essas coisas que são lugares-comuns. E principalmente: seja humilde, mas combine essa humildade com uma certa obstinação. O resto, não é com você, amigo. É um mistério.