O diretor Wim Wenders

O diretor Wim Wenders

Mergulho no raso

No cinema

20.04.18

Os mais jovens podem não acreditar, mas houve um tempo em que a estreia de uma obra de Wim Wenders causava frisson, filas, debates acalorados. Hoje passa quase batida. Mas não é para tanto. Submersão, seu novo filme, está longe de ser irrelevante. É, como se diz, “agradável de ver”, embora desprovido da inquietação autoral e do grão de estranheza que caracterizavam seu melhor cinema, feito nos anos 1970 e 1980.

No centro de Submersão há uma breve e intensa história de amor: o encontro fortuito, num hotel aconchegante no litoral da Normandia, entre o espião britânico James More (James McAvoy) e a biomatemática Danielle Flinders (Alicia Vikander). Depois desse curto idílio, cada um deles partirá para uma perigosa missão: ela, participando de uma expedição oceanográfica a profundezas nunca dantes exploradas do Atlântico Norte; ele, infiltrando-se num grupo jihadista na Somália.

O filme se fragmenta então em três focos narrativos: Danielle em sua expedição; James em sua aventura africana; flashbacks dos dias que passaram juntos na praia. Diálogos mais ou menos rasos sobre as relações entre ciência e religião, a loucura do mundo contemporâneo, a natureza humana e o poder dos afetos pontuam a ação.

 

Amor, aventura e paisagens

Qual o problema aí? Do ponto de vista de quem procura “um entretenimento recheado de ação, aventura, romance, belas paisagens e reflexões sérias sobre a vida”, praticamente nenhum. Está ali o suspense (tanto no fundo do mar como nas masmorras africanas), estão ali as cenas românticas de um fim de tarde no mar, estão ali as paisagens deslumbrantes ao estilo National Geographic, estão ali as pílulas de sabedoria sobre os limites humanos e a força do amor.

O problema, se isso é um problema, é ver um autor como Wim Wenders, que perscrutava com sua arte a passagem do tempo, a natureza da imagem e a frágil constituição da identidade dos indivíduos, reduzido a competente ilustrador de uma história de sucesso – um pouco como um Anthony Minghella filmando o best-seller O paciente inglês.

Por momentos, em Submersão, parece que o “velho Wenders” está de volta. Por exemplo, na cena em que os amantes se deparam, na praia, com ruínas de uma construção militar (quase o eco de uma passagem de No decorrer do tempo, de 1976). Mas logo a potência da imagem submerge (sem trocadilho) numa cena romântica convencional. O tempo volta a ser manipulado e comprimido utilitariamente com propósitos narrativos.

Na colagem dos vários focos expositivos o diretor recorre a efeitos de forte contraste: de uma cena em que Danielle está cercada de água por todos os lados, corta para James sedento num chão de areia, tentando capturar na língua os pingos de uma goteira; a imagem de James jogado escada abaixo é sucedida pela de Danielle subindo para o convés do navio onde viaja. A iconografia da água e sua simbologia (vida, mistério, eternidade, purificação, morte) é explorada de modo subsidiário, submetida à primazia do relato, das ideias e emoções explicitadas nos diálogos.

Nos primeiros filmes de Wenders, a história, o enredo, era mero pretexto para a busca de outra coisa, mais difícil de definir, e que talvez só o cinema pudesse expressar. Aqui, a história a ser contada é a razão de ser, e a “outra coisa” se reduz a mero adorno, verniz poético e metafísico. O risco que o cineasta corre é o de perder seus antigos admiradores sem propriamente conquistar novos, já que o que ele faz hoje outros sem a mesma grife talvez façam melhor.

 

O terceiro assassinato

Assim como se pode ter uma decepção com um filme menor de um grande autor, é possível acontecer o contrário, isto é, surpreender-se positivamente com um ótimo filme de um diretor menor. Tudo depende das expectativas com que entramos na sala escura.

É o caso de O terceiro assassinato, do japonês Hirokazu Kore-eda, um cineasta que, com seus comoventes dramas familiares, parecia preso ao papel de discípulo e diluidor do grande Yasujiro Ozu. Este novo filme, a meu ver, transporta-o a outro patamar, incorporando matizes e enriquecendo cinematograficamente sua abordagem.

As primeiras imagens são de um assassinato brutal (e qual assassinato não o é?): na beira de um rio, na periferia de uma grande cidade, um homem ataca outro de surpresa com uma chave inglesa ou algo parecido, depois joga gasolina no cadáver e o incendeia.

Corta para os advogados do réu confesso do crime, o trabalhador recém desempregado Misumi (Kôji Yakusho). Eles tentam entender a motivação do assassino, que já cumprira trinta anos de prisão por outros dois homicídios, e evitar que ele receba a pena de morte.

Segue-se uma delicada mistura de investigação policial (levada a cabo pelos advogados), drama de tribunal e estudo psicológico – não só do réu, que vive mudando sua versão para o crime, como também do principal advogado da equipe, Shigemori (Masaharu Fukuyama).

Nas várias camadas de construção e desconstrução da verdade, ganham relevo as relações de três pais – o réu, o advogado e o próprio homem assassinado – com suas respectivas filhas.

O rigor no desenvolvimento do relato só é quebrado numa sequência, aliás desnecessária, em que a esposa e a filha da vítima conversam sobre os fatos na cozinha de sua casa. É o único momento em que vemos algo que escapa ao olhar do advogado/investigador Shigemori.

 

“Efeito persona”

Em compensação, parece haver nesse filme uma preocupação especificamente cinematográfica mais acentuada que em trabalhos anteriores de Kore-eda. Um exemplo são as cenas de diálogos entre os advogados e o réu, através de uma divisória de vidro na penitenciária onde Misumi está preso. Há um jogo sutil nessas imagens em que advogados e réu aparecem ora em campo/contracampo, ora de perfil, com só um ou todos em quadro, culminando na última conversa entre Shigemori e o preso, em que os reflexos no vidro configuram quase um “efeito persona”, com os rostos de ambos eventualmente se sobrepondo e confundindo.

O que conecta de modo invisível os personagens e dá sentido às reviravoltas do enredo é justamente essa ideia da transferência (quase no sentido psicanalítico), da identificação, ainda que provisória, de uns com os outros – análoga ao mecanismo de projeção/identificação entre espectadores e heróis no cinema clássico. Se os personagens do filme, ao observar um ao outro, iluminam a si mesmos, nós outros, espectadores, talvez nos iluminemos um pouco ao observá-los na tela. E não é esse um dos papeis mais nobres de toda ficção?

, , , , , , , ,