Cena do filme Um alguém apaixonado
A 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo entra em sua reta final, mas ainda há tempo de ver, entre outras preciosidades, dois filmes fundamentais: Além das montanhas, do romeno Cristian Mungiu, e Um alguém apaixonado, do iraniano Abbas Kiarostami. Veja aqui a programação completa da mostra.
O filme romeno ganhou em Cannes os prêmios de roteiro (assinado pelo próprio diretor e inspirado em livros de Tatiana Niculescu Bran) e de atriz, dividido entre suas protagonistas Cosmina Stratan e Cristina Flutur. Ao que parece, Mungiu gosta dos temas pungentes e polêmicos. Em Quatro meses, três semanas e dois dias (2007), o assunto era o aborto clandestino. Em Além das montanhas, trata-se de amor sáfico (velado) e exorcismo (explícito).
http://www.youtube.com/watch?v=npOe0gzdBfQ
O que aproxima os dois filmes é o fato de serem, ambos, dramas centrados na amizade entre duas jovens às voltas com um ambiente opressivo e aparentemente sem saída: o da ditadura totalitária e corrupta de Ceausescu em Quatro meses…, o do obscurantismo religioso em Além das montanhas.
Mas dizer as coisas assim é trair os filmes em questão. Eles não partem dos temas gerais para chegar aos destinos particulares, que deste modo seriam apenas ilustrações daqueles. Seu foco está no íntimo e pessoal, nos dilemas mais secretos de suas criaturas. No caso, as amigas Voichita (Cosmina Stratan) e Alina (Cristina Flutur). As duas foram colegas de orfanato, depois se separaram: Alina passou um tempo na Alemanha, Voichita entrou para um convento católico ortodoxo. Agora Alina está de volta à aldeia natal e quer convencer a amiga e ir com ela para a Alemanha. Voichita, por sua vez, tenta converter Alina à sua fé e fazê-la ficar no convento.
Eros sufocado
O afeto entre as duas é sufocado pela atmosfera mortificante do convento e da igreja local, presidida por um padre dos mais severos. Reprimido, Eros escapa por onde pode: Alina somatiza suas frustrações, o corpo se rebela. A reação da ordem religiosa não tarda.
Mungiu filma esse embate de modo ao mesmo tempo sutil e implacável. A bela e inóspita paisagem invernal, com a fala e a respiração dos personagens produzindo dramáticos vapores de condensação, acentua a sensação de um lugar parado no tempo, ou antes, onde o tempo cíclico ainda prevalece sobre o tempo histórico. Longos planos com a câmera quase imóvel, nos quais a profundidade de campo oferece ao espectador uma vasta gama de detalhes a observar, alternam-se com movimentos bruscos e nervosos, geralmente de câmera na mão, como se o desejo – ou o diabo, dependendo do ponto de vista – viesse perturbar a ordem estabelecida e instaurar seu império do caos.
À primeira vista, estamos num mundo à parte, castigado pelas intempéries e distante da sociedade urbana contemporânea, o que é realçado pela ausência de energia elétrica e de utensílios modernos. Mas basta pensar no discurso da possessão e nos rituais de exorcismo de tantas seitas evangélicas à nossa volta para constatar que o obscurantismo e a intolerância persistem entre nós, sob as roupagens mais variadas e reluzentes.
Movimento perpétuo
Igualmente atual e universal é o novo Kiarostami, Um alguém apaixonado – tradução brasileira ruim para o título original, Like someone in love, referência à canção de Jimmy van Heusen e Johnny Burke, um entre vários standards do jazz desfilados na trilha sonora.
http://www.youtube.com/watch?v=QIDLBG8tJnc
A narrativa, concentrada em 24 horas, transcorre em Tóquio e seus arredores. Em linhas gerais – e as linhas gerais são muito traiçoeiras, em se tratando de Kiarostami – descreve-se o encontro improvável entre uma garota de programa recém-saída da adolescência (Rin Takanashi) e um velho tradutor e professor aposentado (Tadahi Okino). Cópia fiel, o longa anterior do diretor, era ambientado na Itália, como se sabe. Depois de décadas filmando na sociedade teocrática e patriarcal do Irã, Kiarostami parece disposto a levar seu universo temático, estético e moral aos quatro cantos do mundo, como a demonstrar que suas preocupações centrais – em especial, o jogo entre a identidade pessoal e as máscaras sociais – não respeitam fronteiras.
Mas o curioso, e mesmo prodigioso, é que o cineasta iraniano atinge essa universalidade mergulhando nas particularidades concretas de cada cultura, de cada cidade (ou aldeia), de cada indivíduo. Não existe no mundo um cinema mais físico, substantivo, imanente, do que o seu. Aqui, como em todos os seus filmes, respiramos a atmosfera, sentimos a textura e a vibração dos ambientes: um bar, um apartamento atulhado de livros, um automóvel em movimento, uma oficina mecânica.
Cada personagem tem tempo e espaço para se mostrar como é e como se apresenta para o mundo. Na duração de uma noite e um dia, instauram-se novos laços entre os seres, novos papéis, novas possibilidades. Basta um ligeiro deslocamento, propiciado pelo roteiro e pelas lentes do cineasta. As criaturas de Kiarostami parecem se rebelar, seja de modo violento ou silencioso, contra as prisões da convenção social, da origem familiar, do destino. É esse seu impulso libertário que move o cinema do diretor, seja no Irã, na Itália ou no Japão. Não por acaso, a imagem que mais se repete em seus filmes é a de um automóvel em movimento, com pessoas inquietas dentro.