Na estrada

Cinema

12.10.12

Cidade pequena, perto do litoral. O cinema está vazio, nenhum espectador, mas o projecionista explica como conseguia o efeito de som estéreo. O artista falava lá tela, entrava o fundo musical, ele apertava um botão para o som brilhar em toda a sala. Mostra os diferentes formatos de película – 8mm, super 8, 9,5mm, 16mm,  35 mm – e começa a projetar um filme. Mas Norberto, que parecia ouvir tudo com dedicada curiosidade, dorme no meio da projeção. Sonha com o filme de um cara que rouba um carro e encontra uma arma no porta-luvas.

Na praia, a lembrança de um sonho de criança. Norberto estava dentro de um avião. No ar, voando. Não tinha mais ninguém no avião. Ele andava pelo corredor, via as poltronas… tudo vazio. Ia pra frente, passava pela primeira classe… tudo vazio. A porta da cabine estava empenada, ele forçava, forçava, forçava e quando conseguia abrir, ninguém pilotava o avião. A cabine estava vazia. O avião voava sozinho. Um silêncio, uma pausa na narrativa, e Norberto pergunta, quase num sussurro, para o desconhecido a quem contava o sonho e para si mesmo: “Esquisito, não é?”

As duas cenas reiteram o que A última estrada da praia diz desde sua primeira imagem: com lógica idêntica à que organiza um sonho, o filme conta uma esquisitice cinematográfica, uma história de quase crianças que fogem da realidade sem sair dela, como num filme, na estrada que deixa para trás a responsabilidade e deveres do mundo adulto, para sonhar com um avião no ar, em pleno voo, sem piloto algum na cabine.

http://www.youtube.com/watch?v=tY2Eia8HyS8

Antes mesmo dos letreiros de apresentação, um desconhecido desperta na praia sem dizer palavra – e assim permanecerá ao longo da aventura, mudo, dormido, sonâmbulo, ao lado de três jovens amigos que, parece, querem chegar à praia em que ele dormia.

O desconhecido da primeira imagem acorda meio coberto de areia, como quem ainda não acabou de acordar. No ônibus para a cidade, de olhos abertos, cabeça deitada no vidro da janela, sonha acordado: vê o mundo de cabeça para baixo até despertar de novo com o repetido aviso da cobradora: “fim da linha!” Tenta pagar a passagem com um dinheiro que não vale mais, e com a mesma nota sem valor tenta comprar cigarros. Talvez para voltar a dormir,  aceita a carona no carro de três amigos que pegam a estrada para sair do fim de linha para um outro fim de linha, para a praia, para jogar fora todas as certezas e viver desperto um sonho de nenhuma responsabilidade, de liberdade absoluta: Norberto, que parou de fumar mas precisa ter um maço de cigarro no bolso, Leo, que gosta de pizza mozzarella e sorvete de creme, e Paula, que gosta do Leo, mas gosta também de Norberto.

Imaginemos uma história entre o que Leo quase escreve no cartão postal para o amigo Carlos, (“lembranças tenras e doces da nossa infância, quando ainda éramos bobos”), a ironia de Norberto (“somos três retardados brincando de jogar bola”), e a saudade de Paula (“se eu soubesse onde é a tua casa na praia… um dia a gente volta para lá”). Imaginemos, e estaremos ao mesmo tempo diante da história contada e do modo de contar histórias de A última estrada da praia. A câmera, na mão do fotógrafo, age movida por uma igual necessidade de mover-se sem sem destino certo, numa linha sinuosa dentro de cena, cúmplice dos personagens que seguem num caminhar sem rumo (bobo? alegre? retardado? – ou tudo isso porque sofrido?) em busca do verão na praia para brincar de jogar bola, para escapar da vida adulta sem sair dela. Alguma distância existe, sim, entre o personagem narrador e os personagens narrados, mas embora o primeiro não viva exatamente a mesma questão dos outros, parece alimentar-se dessa experiência. Projeções do narrador, Norberto, Paula, Leo, vivem no lugar dele o desejo, o delírio, o sonho de, com as possibilidades de escolha do mundo adulto, retornar à infância. Deixar-se levar pelo absolutamente não planejado, pelo não conhecido, reverter o que anuncia a canção – “eu não consigo ser alegre o tempo inteiro” – e jogar-se de cabeça, com roupa e tudo, na praia de quase inverno como se fosse verão.

Para tanto, mais importante que a praia é continuar na estrada. Leo, Paulo e Norberto, com o desconhecido como  carona, mudam de rumo a todo instante: esquecem a estrada para brincar na roda gigante de um parque de diversões; deixam o carro na rodoviária e compram uma passagem de ônibus para outra cidade; pegam a fila mais longa e demorada do pedágio; entram num cinema para ver um filme, mas dormem todos no meio da sessão; saem num bote do hotel em busca do desconhecido; escrevem cartões postais para ninguém e queimam todos eles em seguida; bebem cerveja e divertem-se num jogo de troca de camisas; lambuzam o corpo inteiro com sorvete. No avião sem piloto, as crianças sonham que são alegres o tempo inteiro – um tempo inteiro que dura só a metade do filme.

Primeiro longa-metragem de Fabiano de Souza, livre adaptação de O louco de Cati, romance de Dyonélio Machado, que teve sua primeira edição em 1942, A última estrada da praia, divide-se em dois tempos de quase igual duração. Dois tempos, dois movimentos, como em música: allegro vivace e allegro ma non tropo. Bem na metade da história, o sonho de ir para a praia é engolido pelo pesadelo que persegue o desconhecido desde a primeira cena: ele foge do carro (real ou imaginário?) com uma luz vermelha e uma estridente sirene. Os amigos se separam num briga por nada – porque Leo gostava de sua camionete? Porque Norberto achava absurdo gostar de um carro e nem sequer dar um nome para ele? Ou por um quase nada – uma luz vermelha acendeu no painel do carro. Fim da praia, é preciso traçar um plano para o que nasceu para não ter plano algum. Fim da linha, Leo e Paula querem voltar. Norberto responde com uma nota que não vale nada, quer ir adiante, até o posto de gasolina – quem sabe? – depois da curva. Leo e Paula voltam com o carro. Norberto fica com o desconhecido, falando sozinho na praia deserta, lambuzando-se de leite condensado, abrindo portas que saem do nada para coisa alguma, repetindo, com aquele mesmo tom de voz usado para comentar a esquisitice do sonho do avião, ao mesmo tempo  para o desconhecido e para si mesmo: “tu é um cara que se perdeu, viajou, e agora está livre”.

A história, construída como uma fuga, como um labirinto ou beco sem saída que empurra os personagens todo o tempo de volta ao ponto de partida que é também o fim da linha: o carro de luz vermelha e sirene estridente corre atrás do desconhecido para perguntar qual era a estrada da praia.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles.