Em seu livro recente A era do cometa: o fim da Primeira Guerra e o limiar de um novo mundo (Todavia, tradução de Luis S. Krausz), o historiador Daniel Schönpflug usa diários, cartas e memórias para captar, tantos anos depois, algumas das energias históricas que circulavam logo após o conflito. Ainda que a guerra tenha terminado em 1918, a paz definitiva só chegaria depois de uma série de acordos, “dos quais o último foi firmado só em 1923”. O armistício assinado em 11 de novembro de 1918 entre os Aliados e a Alemanha, evento “marcado tanto por uma simultaneidade estupenda quanto pela multiplicidade de pontos de vista”, pode encerrar o conflito, mas também indica que, segundo Schönpflug, “a história novamente se despedaça em incontáveis narrativas individuais, não sincrônicas”.
Uma dessas narrativas é sem dúvida o extremismo étnico e político, companheiro do nacionalismo xenófobo e do fascismo. Um dos personagens de Schönpflug é Soghomon Tehlirian, revolucionário armênio que assassinou o ex-ministro do Interior da Turquia em 1921; outro é Rudolf Höss, combatente da I Guerra que a partir de 1933 se torna membro das SS de Hitler e, em 1940, comandante do campo de Auschwitz. É possível seguir o fio da meada de Schönpflug em direção ao futuro e perceber, em relatos, diários e memórias, como foi viver a transformação do fascismo de uma ideia a uma prática, especialmente na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler.
Talvez o maior monumento memorialístico de resistência ao fascismo, ao menos no âmbito italiano, seja Cadernos do cárcere (editado em seis volumes pela Civilização Brasileira), de Antonio Gramsci (1891 – 1937). Preso pelo regime de Mussolini de 1926 a 1934, Gramsci usa em seus Cadernos um duplo registro: a escrita é tanto um exercício contra a brutalidade do cárcere quanto um laboratório de teste das ideias e dos conceitos. Gramsci, nas páginas dos Cadernos, se desenvolve como teórico e líder comunista ao mesmo tempo em que reafirma sua condição de ser humano (de sobrevivente) diante da violência fascista. A obra de Gramsci não é um diário sobre a prisão; essa condição se anuncia sutilmente nas entrelinhas. O que se nota claramente é a força mental de Gramsci em sua tentativa de permanecer lúcido, indicando os pontos fracos do fascismo, que se alimenta da ignorância: “o fascismo se esgota e morre precisamente por não ter mantido nenhuma esperança, por não ter aliviado nenhuma miséria”.
Mais ambíguo é o caso de Curzio Malaparte (nascido Kurt Suckert, 1898 – 1957). Autor dos romances Kaputt (1944) e A pele (1949), Malaparte começa os anos de 1920 ao lado do fascismo (publicando artigos favoráveis a Mussolini), mas em seguida reconhece o ridículo inerente àqueles fascinados pelo poder. Malaparte é um parente de Céline no estilo e de Gregor von Rezzori no temperamento. Torna-se um ás da maledicência, falando mal de Mussolini aos dirigentes fascistas nas festas e dos próprios dirigentes em seus artigos em revistas e jornais. A partir de 1929, intensifica os ataques nas páginas do jornal La Stampa. Mussolini aguenta dois anos, até 1931, quando exige sua demissão. Nesse mesmo ano, já refugiado em Paris, Malaparte lança um livro baseado no material publicado no jornal, Técnica do Golpe de Estado. O capítulo final intitulava-se “Uma mulher: Hitler” (“Hitler é a caricatura de Mussolini”, escreve ele). Em 1933, quando volta à Itália, é preso, espancado e enviado para um exílio de cinco anos na ilha de Lipari.
Parte importante da vida sob o fascismo é o reconhecimento de seus muitos aspectos ridículos, o reconhecimento dos aspectos grotescos dos ditos e das fisionomias dos dirigentes. “O nome soou para mim vazio e desimportante”, escreve Stefan Zweig (1881 – 1942) em suas memórias (Autobiografia: o mundo de ontem, Zahar, tradução de Kristina Michahelles) sobre a primeira vez que escutou o nome “Hitler”. “Agitador violento”, “vulgar”, preso em 1923 depois de uma tentativa de golpe. “Ele só ressurgiu depois de alguns anos”, escreve Zweig, “e agora a onda ascendente da insatisfação o elevou com rapidez”. Os intelectuais, continua Zweig, “ironizavam o estilo pomposo” de Hitler “em vez de se ocupar de seu programa”; enxergavam no Monstro “ainda o agitador de cervejarias que nunca poderia ser seriamente perigoso”. A tática de Hitler era dupla: aproveitar-se da ignorância popular, fazendo promessas que não tinha intenção de cumprir, projetando um mundo de futuro que era vazio, retrógrado e devastado. O diagnóstico do ridículo, no entanto, escreve Zweig, não basta – tendo se tornado o pano de fundo da letargia de toda a intelligentsia progressista da época.
No âmbito alemão, um projeto memorialístico de resistência ao fascismo comparável ao de Gramsci é, sem dúvida, o Diário de Victor Klemperer (Companhia das Letras, tradução de Irene Aron). Seu subtítulo é revelador: “Testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista 1933-1945”. Klemperer (1881-1960), judeu alemão convertido ao protestantismo, foi professor universitário de línguas e literaturas românicas em Dresden – consequentemente, tinha um ouvido apurado para as transformações da língua no cotidiano fascista, um elemento recorrente em suas anotações (que Klemperer publicou como livro em 1947, LTI – Lingua Tertii Imperii, lançado no Brasil pela Contraponto com tradução de Miriam Oelsner).
Em 10 de março de 1933, ao comentar a eleição de Hitler como chanceler, Klemperer evoca a I Guerra e o ano de 1918: “Hitler chanceler. O que denominei terror até o domingo da eleição, 5 de março, foi um prélude suave. Repete-se agora exatamente, apenas com outros sinais – com a suástica –, a situação de 1918”. Mais uma vez, a prometida marcha ao futuro nada mais é do que um retorno às situações mais abjetas do passado. “É surpreendente como tudo desmorona sem reação”; “a selvageria das proibições e das agressões”; “a gritaria patética de um fanático religioso”, escreve ainda Klemperer, e muito mais.
Afirma Pereira, do italiano Antonio Tabucchi (1943 – 2012), de 1994, por sua vez, é um romance que avança pela década de 1930 e oferece uma visão do fascismo português de Salazar. Pereira trabalha no jornal Lisboa, cuidando da página cultural, depois de trinta anos trabalhando como repórter policial em outro veículo. O diretor do jornal é alinhado ao regime de Salazar e o único meio do jornalista Pereira obter qualquer informação crítica sobre Portugal é a partir do garçom do Café Orquídea, que escuta, clandestinamente, estações de rádios estrangeiras. Não há fascismo que perdure sem a conivência da imprensa, afirma, sutilmente, Pereira.
O romance de Tabucchi é, em grande medida, um relato da progressiva “formação política” de Pereira diante do fascismo, que acontece ao longo de agosto de 1938. Sua trajetória de conscientização e emancipação política vai em paralelo ao seu uso cada vez mais anárquico das possibilidades de sua atividade jornalística (primeiro com a tradução de autores franceses, depois, antes de desaparecer e abandonar sua identidade, a derradeira peça de sabotagem que deixa no prelo). Tabucchi escreve na nota introdutória ao romance que o cerne da narrativa são “as confissões de Pereira”, que lhe aparecia à noite e dava seu testemunho sobre “as tragédias do nosso passado recente”. Como mostram as intuições de Schönpflug, Gramsci, Klemperer e tantos outros, o “passado recente” muitas vezes nos espera na próxima esquina, feito de gritaria e selvageria.