Já houve filmes que abordaram a presença nazista no Brasil, especialmente no sul, como Aleluia Gretchen (1976), de Sylvio Back, e Outra memória (2004), de Chico Faganello. Mas nenhum até agora tinha contado uma história tão horripilante e reveladora de nossas mazelas como a mostrada no documentário Menino 23, de Belisário Franca.
Com base numa pesquisa do historiador Sidney Aguilar Filho, o filme reconstitui um evento ocorrido em meados dos anos 1930, quando o nazifascismo avançava na Europa e as teorias eugenistas (leia-se racistas) contavam com simpatizantes na elite política e intelectual do Brasil.
Meninos numerados
Foi nesse contexto que membros da família Rocha Miranda, oligarcas bem relacionados com o poder desde a época do Império, recrutaram num orfanato católico do Rio de Janeiro cinquenta meninos negros e os levaram para trabalhar como escravos na propriedade da família em Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo. Esses meninos eram identificados por números. O de número 23 foi um dos sobreviventes encontrados pelos realizadores do documentário. Chamava-se Aloisio e morreu aos 93 anos, pouco tempo depois de dar seu contundente depoimento para a câmera.
Um dos muitos acertos do filme é reproduzir em sua estrutura o caminho da investigação do historiador Sidney Aguilar (que serve como condutor da narrativa). A descoberta, na ruína de uma fazenda, de tijolos com a suástica impressa em relevo leva a um agricultor meio marginalizado da região, que por sua vez leva a Aloisio, que depois de certa relutância abre as comportas da memória e propicia o acesso a outros personagens e relatos. Paralelamente a isso, mostram-se os passos da pesquisa em arquivos, os documentos de época (filmes, fotos, recortes de jornal etc.), ocasionando a ampliação do quadro histórico geral.
Se há um reparo a ser feito a esse documentário notável é à reconstituição ficcional de certas cenas rememoradas pelos entrevistados. Rodadas em câmera lenta num preto e branco granulado, ao som de um insistente pianinho, elas sentimentalizam de maneira a meu ver supérflua aquilo que já se expressava com uma força tremenda nas palavras, no corpo, nos olhos e nos gestos dos sobreviventes e seus descendentes. São talvez o tributo que se paga à nossa época em que tudo se expõe e pouco é deixado para a imaginação. Penso, em contraste, no magnífico documentário Eu fui a secretária de Hitler (2002), de André Heller e Othmar Schmiderer, que consiste unicamente do depoimento de uma mulher (a secretária do título) diante da câmera.
Emoção e didatismo
Essa indução emotiva e esse cuidado didático indicam que o destino mais adequado de Menino 23 é a televisão. Não por acaso, ele é coproduzido pela Globo News e pelo Canal Brasil. Pode ser que essas muletas narrativas se justifiquem pela intenção de atingir um público mais amplo, disperso, desatento. Afinal a televisão, como disse Godard, não comporta o silêncio.
Seja como for, há no documentário imagens de grande impacto, como as de vacas e cavalos marcados a ferro com a suástica. Ou a sequência de fotos de um personagem conhecido como “Dois”, um menino negro que foi separado dos outros e levado para trabalhar no serviço doméstico da casa-grande. Criado como “da casa”, fez amizade com o filho boêmio da família e acabou acreditando que fazia parte do clã. Morreu pobre, amargurado e alcoólatra. É a grande figura trágica do filme.
Há um momento crucial dessa história que serve para ilustrar toda a tragédia de nossa herança escravista. Quando o governo Getúlio Vargas, pressionado pelos Estados Unidos, decide finalmente entrar na guerra ao lado dos Aliados, depois de ter flertado com o Eixo, os nazistas brasileiros e seus simpatizantes integralistas passam a ser investigados e perseguidos. A família Rocha Miranda simplesmente abre os portões da fazenda e “liberta” aqueles meninos, agora adolescentes. Isto é, solta-os no mundo, sem eira nem beira. A maioria acabou na sarjeta, na doença e no alcoolismo.
Pode-se ver aí, em ponto menor, o que aconteceu com os ex-escravos depois da abolição, jogados às margens de uma sociedade que não estava disposta a integrá-los como cidadãos.
São feridas desse tipo, hoje reavivadas com o recrudescimento assustador de ideologias de extrema direita entre nós, que Menino 23 cutuca e ilumina.
Os campos voltarão
Está em cartaz no CineSesc, em São Paulo, uma pequena obra-prima, Os campos voltarão, filme mais recente do veterano Ermanno Olmi, realizador de O posto, A árvore dos tamancos e tantos outros títulos memoráveis. Toda a ação se passa num trincheira coberta de neve durante a Primeira Guerra Mundial, entre um grupo de soldados que esperam a morte certa e conversam sobre o sentido da vida.
Baseado em histórias que o cineasta ouviu de seu pai, esse drama melancólico em que as cores dessaturadas tendem ao preto e branco é uma daquelas obras de arte que têm o dom de sublimar as desgraças humanas sem edulcorá-las, de resgatar o que resta de humano no homem. Num espaço restrito, com pouquíssimos elementos, Olmi constrói um mundo complexo e comovente, mostrando que a beleza pode ser dolorosa e a dor, bela.