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Grande Guru,
Temos mais isso em comum: um pai vascaíno. Só que o meu abriu mão do direito de escolher o time do filho. Estávamos no Maracanãzinho para ver um circo, lá por 1967 ou 1968. Poderia ser o de Moscou, em plena ditadura? Não sei, mas na minha memória é o de Moscou, sim. Passou o vendedor de bandeirinhas na arquibancada, com a de todos os grandes clubes, e meu pai me disse: “Escolha a bandeira que quiser”. Eu, em eterno flerte com o desastre (copyright by Elvis Costello), hesitei entre a do Botafogo e a do América. Ou seja, entre a esfinge alvinegra, sem letras ou dizeres, e o pavilhão encarnado, de profundas implicações políticas. Decidi-me pela bandeira do Botafogo.
Aos quatro ou cinco anos de idade, eu não tinha a menor ideia de que, naqueles tempos, o time representado por aquela bandeira era o bicampeão da cidade, graças a um timaço com Jairzinho, Gerson, Paulo César, Roberto, Rogério, Zequinha… Nem, muito menos, que pouco antes o Botafogo tinha tido outro timaço bicampeão carioca, com Garrincha, Nilton Santos, Didi, Amarildo, Quarentinha, Zagalo… Ou seja: eu comprei a bandeira com a Estrela Solitária e ganhei de brinde a história gloriosa – e muito sofrimento pelos vinte e um anos seguintes, até o Maurício jogar bola e Leonardo gol adentro, em 1989.
As décadas de 70 e 80 foram duras para os botafoguenses. Como alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo, fui muito ao Maracanã ver jogos do América contra aquele outro time, sabe, aquele do qual a gente evita pronunciar o nome. Era uma fase em que o pessoal de Campos Sales ganhava todas, fácil. Ficava aquela massa silenciosa lá na arquibancada à esquerda das cabines de rádio, ficava o punhado de torcedores do América happy few cá na arquibancada à direita das cabines de rádio. Eu descia a rampa gritando “Saanguê! Saaanguê! Saaaanguê!” junto com essa galera de camisa vermelha.
Porém, enquanto eu era criança, não era o meu pai quem me levava ao Maracanã, mas sim um tio paraibano, torcedor do Fluminense e do Náutico. (Por causa disso, tenho grande simpatia pelo Timbu.) A generosidade de me permitir escolher o time que eu quisesse tinha raízes profundas na psiquê do meu pai. Garoto, ele tinha sido uma das 200 mil pessoas traumatizadas no Maracanã pela final da Copa de 1950, contra o Uruguai. Meu avô levara a família, que presenciara o clima de já-ganhou e a inesperada derrota, covardemente debitada na conta do nosso goleiro negro, Barbosa, que, aliás, jogava no Vasco. O Maracanazo levou o meu pai a passar uns bons (ou maus) trinta anos sem pôr os pés no “maior do mundo”. Ele é Vasco, ainda hoje, lá em Belo Horizonte, mas nunca se interessou por futebol como eu e você nos interessamos.
Quem tem uma bela definição de por que esse esporte mexe tão visceralmente com gente como a gente é o Verissimo. Ele diz que o futebol é a única maneira de aos 60 anos se sentir como se tivesse 6 anos de idade. Bingo! Ninguém precisa ir à escola para ter a sensação arrepiante de que sacaneará ou será sacaneado pelos amiguinhos na hora do recreio. Na hora em que a bola rola, meu amigo, é sempre recreio na nossa cabeça.
Não tenho certeza sobre qual era o time do meu avô paterno (o do materno, um português eu sei, era São Cristóvão). Acredito que ele também fosse Vasco, time de imigrantes, mesmo os italianos do Rio. Depois do Maracanazo e da mudança da família para Barbacena, ele tomou uma atitude ainda mais radical que o filho em relação àquilo que o Aldo Rebello deve querer voltar a tratar por ludopédio: apitou algumas partidas de futebol amador pelo interior de Minas Gerais. É preciso odiar profundamente o balípodo (além da própria mãe, uma ex-governanta suíça que não conheci) para ser árbitro.
Outro dia, meu amigo Tárik de Souza me trouxe de Montevidéu um CD duplo, com a narração da final de 1950 numa rádio uruguaia. O sujeito do microfone se surpreende com a vitória da Celeste tanto quanto a multidão. Dá para ficar comovido com a emoção dele. E também dá, juro, para escutar o silêncio no resto do estádio. Sempre achei essa expressão um oxímoro cafona, “escutar o silêncio”, argh, mas ali funciona.
Naquele tempo, você sabe, usávamos camisas brancas com detalhes em azul, logo aposentadas pelos supersticiosos. Fizeram um concurso para escolher a nova roupa da seleção brasileira. Os jornalistas do júri, entre eles o Armando Nogueira, consultaram o DNER para saber qual cor se fazia mais presente à noite, essencial num tempo de iluminações precárias. Souberam, então, que era o amarelo. E combinaram que escolheriam a camisa na qual preponderasse essa cor. O prêmio foi para um jovem gaúcho, xará seu, Aldyr Garcia Schlee, com quem eu mantenho outra correspondência honrosa, embora menos assídua que a nossa. Se hoje a gente fala na “amarelinha”, devemos ao Schlee, que também é escritor. E dos bons.
Grande abraço,
Arthur
* Na imagem da home que ilustra este post: lance do jogo entre Botafogo e Flamengo, na final do campeonato estadual do Rio de Janeiro, em 1989