Quem quando queira e a surpresa dos avulsos
Aos livros de poesia pedimos coisas demais ou muito pouco. Alimentam tanto o lamento quanto o discurso de salvação, servindo eventualmente como bodes expiatórios da literatura de toda uma geração, época, país. Quanto ao poema, é bem possível que o mesmo argumento usado para destroná-lo seja retomado em outro contexto para assinalar sua potência. O poeta tornou-se esse duplo responsável pela renovação e pelo desgaste, pela impossibilidade do novo, do outro e, apesar de tudo e de muitos, insiste ainda em existir.
Jamais fomos modernos, mas de vez em quando ainda podemos ser flagrados varrendo restos de utopia para debaixo do tapete. Com as vanguardas aprendemos que ao poema tudo pode ser concedido, mas também que a poesia morre às vezes por excesso de poesia. Redução de impossíveis a possíveis minguados, ralos, jogos de abafa, desejos reprimidos, tudo isso um dia acaba por refluir. O leitor que se cuide e esteja atento. De tão acostumados a esperar tudo e qualquer coisa do poema, passamos a não esperar nada ou muito pouco. Nesse estado de espírito pouco propício a surpresas, de vez em quando alguma coisa acontece, alguma coisa que não oculta nem regateia seus próprios modos de testar o poema, mesmo sabendo que tudo ou quase já foi testado.
O novo livro de João Bandeira, Quem quando queira, uma das últimas publicações da Cosac Naify, surge no campo minado da poesia contemporânea desafiando velhos vícios de recepção já bastante naturalizados entre nós. Não é uma antologia (ainda bem), embora abarque um grande arco de tempo – os poemas mais antigos foram escritos há quase 20 anos e muitos deles já foram publicados antes em revistas, antologias e suplementos de jornais.
A obra e o autor (foto: Ninil Gonçalves)
O livro se abre com um poema mínimo que interpela o leitor para deslocá-lo da posição de entendimento. Convida-o a percorrer os embaraços da vida (e por extensão da poesia) sem dela exigir explicações. Talvez por isso seja preferível revelar um problema à bonequinha vietnamita, mesmo sob o risco de sua propagação infinita em sussurros ininteligíveis. A primeira parte está marcada pelo luto e pelos modos de se atar à ausência sem precipitar-se no nada, são poemas de versos nítidos, cortantes, contidos. Neles ressurge o nome Lúcia (Riedel), a quem o volume Rente (Ateliê Editorial, 1997) – última publicação em livro antes de Quem quando queira – havia sido dedicado. Nele, Bandeira experimentava uma forma (rara entre nós) de lírica concreta, em que o nome Lúcia comparecia não apenas como foco de endereçamento e meditação, mas surgia em sua espessura nominal metamórfica, como se o poeta tocasse e revirasse o corpo do nome próprio, transformando-o lúdica e amorosamente em lucarna, lucerna, lucífera, ludo e finalmente lux.
Já nos poemas deste novo livro, o nome Lúcia aparece como sombra que insiste e com a qual o poeta continua a conversar, mas de longe, sem poder efetivamente tocá-lo. O “Díptico da Lúcia” conjuga dois curtos – “falta” e “acerto” –, articulando o infinito da ausência com uma possibilidade vertiginosa de atar-se ao perdido à beira do nada. A angústia da forma e a angústia da falta se interpelam e se entrelaçam. São versos que nos remetem a outras experiências de convergência entre a escrita poética e o luto, dentre as quais eu remeteria a Algo: preto, de Jacques Roubaud (belamente traduzido por Inês Oseki Depré), e Nous deux encore, de Henri Michaux.
Se o abismo de um luto é também sempre uma espécie de delírio, o retorno ao real será queda no cotidiano, descida ao dia a dia, ao aconchego simpático de um novo encontro amoroso, exemplificado no poema em que “a compreensão de todas as coisas” surge no meio de uma noite de insônia, quando o amor desce as escadas, descabelado, para fazer uma queixa que é também uma espécie de cuidado. É preciso dizer que esses poemas, sem cederem ao confessional, mobilizam a intimidade, como um baixo contínuo, marcando bem a diferença entre se exibir e se escrever.
Logo adiante surgem veículos lentos que nos conduzem em passeios macios por uma cidade estrangeira não nomeada, onde a motorista “nunca mais tem pressa/ e vai perguntando aos passageiros como eles têm passado/ se estão bem acomodados, e todos concordam com ela/ que o melhor trajeto é o que for mais longo e mais bonito”. Em contraste com a voz sincopada e relacional do primeiro conjunto, surge um andamento mais mundano em poemas também mais visuais, que se abrem sobre paisagens de colinas, vilas militares, palmeiras, coqueiros, praças, ruas tomadas por passeatas, praia com traineira, barco, areia, o canto de uma lavadeira e uma gringa fogosa. Aliás, neste “Suvenir”, o autor se utiliza de procedimento formidável, fazendo que os itálicos articulem uma segunda voz, que se descola do poema e retorna como seu próprio eco ou fantasma dialógico.
A segunda parte do livro é marcada pelo transporte rítmico da frase, aproveitando o seu impulso prosódico – ainda que ela, frase, não seja nunca tomada como unidade mínima e completa de sentido, mas verso em expansão melódica, discretamente envolvido em um “halo narrativo”, como talvez dissesse o crítico João Barrento. Em uma nota à edição de Flores do Mal, Baudelaire ressaltava a afinidade entre a frase poética, a música e a matemática, sustentando que os esforços no campo da prosódia eram cruciais para o poeta moderno. Para ele a frase poética pode seguir uma horizontal, ou subir, depois descer, imitar uma espiral, construir parábolas e se partir em pedacinhos. Além do élan musical, os poemas desse segundo conjunto são marcadamente cinematográficos, criam sensações de travelling (antonionesco?) e exploram o ritmo interno das cenas. As aproximações entre cinema e poesia costumam ressaltar a influência do corte cinematográfico na escrita do poema. Sempre que me deparo com afirmações desse tipo me lembro de uma palestra sobre montagem realizada por Jean-Luc Godard, na qual ele dizia que a ideia e o procedimento de montagem no seu cinema vêm totalmente do uso do verso na poesia moderna. Desde quando pensar o convívio entre as artes tornou-se crucial para entender de que modo cada uma encara a sua solidão e o seu desgaste, ou lidamos mais cuidadosamente com o assunto jogos de influência, ou correremos bem de perto o risco de aproximações que cumprem apenas papel decorativo.
Mesmo uma leitura rápida do livro já mostra que se trata de fazer poesia experimentando diversas possibilidades formais, sem proselitismo nem entronizando a angústia da influência: há poemas em prosa, poemas em filigranas seccionados (cumminguianos), poemas-listas, poemas-colagem, poemas-homenagem, poemas visuais, alfabetos com coisas e poemas feitos com palavras achadas no desgaste de outdoors. Em relação ao livro anterior, nota-se o abandono dos haicais (à exceção do poema de abertura e de “Desire”: “Like a missile/ I miss you”) e também de procedimentos gráficos que dependiam diretamente da tridimensionalidade do livro.
Apresentação do Poemix no SESC Pompeia, em São Paulo (2005)
Para quem se interessa pelas discussões no campo da poesia contemporânea, Quem quando queira mostra que a antinomia entre uma poesia visual de matriz concretista/construtivista e uma poesia “de versos” deixou de ser um dilema literário. Se a problematização e a recusa desse binarismo podem ser observadas na própria trajetória dos poetas concretos, tal recorte continuou a estruturar o debate crítico brasileiro talvez por mais tempo que o necessário. Esse mesmo tipo de liberdade diante de tradições em geral entendidas como contraditórias permitirá também que o poeta exercite a versatilidade do verso em direção à frase, e a musicalidade do fraseado em direção ao verso.
Dizer que o autor “transita entre várias linguagens” seria de certo modo sucumbir ao clichê crítico. Como se a poesia e as outras artes tivessem consumado seu divórcio litigioso de maneira que seu contato só pudesse se dar a partir de então como uma espécie de incesto e/ou por meio de termos não menos suspeitos e vagos que a própria palavra “poesia”: hibridismo, multimídia, inespecificidade, atravessamento, porosidade. O divertido aqui é que essas “ultrapassagens de fronteiras” são feitas de modo muito menos proselitista do que o que às vezes se vê. Essa insistência no valor do trânsito pressupõe que a normalidade do poema enquanto fenômeno seria desde sempre a de certa impermeabilidade em relação às demais linguagens artísticas (e filosóficas, críticas, teóricas) que o rodeiam. Enquanto isso, a cultura da poligamia artística constituiria exceção – o atrevimento em um mundo onde o atrevimento sempre periga converter-se em estratégia e cálculo de sucesso.
Aqui vale mais ressaltar a atração que as linguagens exercem e sempre exerceram umas sobre as outras do que uma suposta “atitude” calculada do poeta, que, aliás, parece simplesmente estar deixando que o poema se guie pela força de “tudo o que vai indo por aí”, para usar um verso importante na economia do livro. Quem quando queira não deixa de ser também um retorno do autor ao livro propriamente dito após quase 20 anos de trabalho mais voltado para as dimensões sonora, vocal e visual da linguagem poética.
A poesia assim como a prosa
Um dos interesses de Quem quando queira reside no modo como responde a uma das questões mais caras ao debate sobre poesia hoje: a relação do poema com a prosa, ou seja, do verso com a frase. O poeta francês Batteux sustentava, ainda no século XVIII, que “toute prose bien faite est vers” (“toda prosa bem-feita é verso”), crença que ressoa ainda hoje quando se pretende legitimar a força da prosa poética em relação à suposta frouxidão da prosa em prosa. Mas não era bem isso que faz um escritor, como Mallarmé defendia quando afirmava a soberania da frase como forma suprema. Há por outro lado grande dificuldade em nomear as experiências de contato entre poema e prosa evitando a ideologia estética embutida na expressão “prosa poética”. Narrativas escritas em versos rimados já foram chamadas em outros tempos de prosa escandida, prosa versificada, verso prosaico e verso técnico. A competitividade entre verso e prosa é um fenômeno bastante moderno, mas que já tem também a sua história. Atualmente já não cabe simplesmente opor o prosaico ao poético para traçar uma linha de vulgaridade – poesia sublime, prosa ordinária. O debate será mais produtivo na medida em que permitir reelaborar a diferença entre o verso e a frase para além das dicotomias formais e genéricas tradicionais.
Neste sentido é que talvez seja interessante, ainda que sob o risco de soar presunçoso, tentar distinguir entre prosaísmo e prosificação (ou proicização, ao gosto do freguês) do verso. No segundo caso, interessaria mais o deslizar do verso em direção à frase, um movimento com poder próprio de mobilização da música do sentido, e que se desvia do lugar-comum de um verso em queda ou em perda do sublime. Quando o verso já não se define pelo rigor métrico em contraste com o ritmo variado da frase, a mancha gráfica poderá ajudar a marcar essa diferença, mas não resolve o problema. Há diversos poetas hoje justamente em uma situação produtiva de “poesia-rumo-à-prosa” – o termo foi cunhado por Pierre Alferi (refiro-me ao ensaio “Rumo à prosa”, traduzido por Masé Lemos e Paula Glenadel e acessível na revista ALEA, vol. 15), que vem se dedicando a desfazer as antigas oposições e tenta entender as demandas do poema assombrado pela prosa. No contexto francês, há também poetas que definem seu trabalho nos termos de uma pós-poesia – é o caso de Jean-Marie Gleize, por exemplo –, opondo-se à poesia propriamente dita, para a qual o conceito de verso seria ainda soberano. Além de um campo de questões em aberto, esses exemplos podem ser lidos como sintomas de um esgotamento da oposição moderna entre poesia e prosa, em que a poesia era encarada como uma “Natureza fechada” (Barthes), baseada na autonomia do Nome, e para a qual a palavra era o centro de irradiação das mais importantes inquietações. Nas últimas décadas parece haver uma ênfase na situação relacional da linguagem poética, em que a poesia já não se vê como uma linguagem totalmente autônoma e em oposição ao suposto funcionalismo da prosa.
De que maneira os poemas de João Bandeira entram em estado de prosa? Antes de responder, é preciso mencionar o que para muitos é um dado bastante conhecido: o poeta é também músico. E foi um dos fundadores do grupo Poemix, integrado por Lenora de Barros, Cid Campos, Arnaldo Antunes e depois Walter Silveira, com colaboração de Grima Grimaldi. O Poemix realizava performances vocais com ambientação sonora, projeção de vídeo e uma postura de palco performática, fazendo uso de objetos, alternância de momentos em duplas, trios ou todos ao mesmo tempo, além de uns poucos momentos solo, sempre com base na leitura de poemas de autoria dos próprios integrantes.
A prosa a que o poema de João Bandeira se dirige é cadenciada e depende fortemente de uma respiração musical. Talvez se trate menos de uma conversão súbita à forma (e à ideologia) da prosa do que um trabalho sobre a duração do verso, explorando a capacidade/lucidez formadora do verso. São poemas que caminham em prosa. E nesse caminho absorvem o visível, onde há sempre uma frase solta no ar ou um resto de palavra perdido. Assim o autor incorpora ao livro imagens do desgaste das palavras nos outdoors de beira de estrada. Trabalho que é mais resultado de um acaso que de uma busca. Embora constituam uma série, essas fotos são avulsas, e Bandeira diz gostar que sejam assim: “Vou encontrando pelas cidades os membros de uma série (muito raramente saio à caça deles). O que procuro mesmo é a surpresa dos ‘avulsos’ que encarnam alguma singularidade”. Quase simultaneamente ao lançamento de Quem quando queira, Bandeira inaugurou a exposição O princípio é o meio. O verso pode receber muitas interpretações, deixando um pouco de lado a declaração de princípios e a discussão sobre os media (uma vez que a afirmação propõe uma variação sobre a famosa frase de McLuhan, “a mensagem é o meio”). A mim agrada pensar que quando algo é bruscamente interrompido, o que sucede ao corte é um começo de outra espécie, não o início, mas um princípio acidentado, cuja cicatriz não esconde o lugar de uma ferida. A poesia seria talvez hoje a possibilidade de uma linguagem acidentada, ameaçada pela instituição Poesia, tanto quanto fascinada pela promessa de uma frase que cante.
O livro traz ainda homenagens a pessoas ligadas ao campo das artes visuais, campo em que o autor atua há vários anos como curador de importantes exposições, sendo o responsável pela programação de exposições do Centro de Arte Maria Antonia, em São Paulo, que abriga tanto a produção de artistas consagrados como a de jovens artistas ainda pouco conhecidos. São poemas que alternam entre o perfil afetuoso e o gesto ensaístico, por meio de cintilações compactas em lugar de reflexões expansivas.
Quem quando queira pode trazer um pouco de leveza e a impressão de que a herança moderna não precisa ser um fardo ou um mau agouro, mas um laboratório a ser reinvestido e repensado em função da dissolução ou afrouxamento de certas disputas. Longe de fazer da convivência entre diferentes vertentes poéticas um sintoma pseudodemocrático da biodiversidade poética contemporânea, ele libera a poesia de superegos já caducos, sem se privar do tom lírico ou perder o horizonte de autocrítica. Abre pequenas brechas de contato, ali onde se tornou possível colocar em diálogo o rigor lúdico do concretismo, um ouvido musical e a utopia do verso livre. Como em certos filmes em que as cenas de amor são filmadas como cenas de morte (e vice-versa), o livro de João Bandeira consegue livrar a poesia brasileira de alguns antagonismos por fazê-lo da forma mais tranquila possível, como se não fosse nada, ou fosse apenas questão de quem queira.