Já vou dizendo que não li o romance O vendedor de passados, do angolano José Eduardo Agualusa, em que se inspirou livremente o filme homônimo de Lula Buarque de Holanda. Parece que o enredo foi bastante modificado no traslado de Luanda para o Rio de Janeiro, mas isso não importa. A história, de todo modo, é ótima. O filme, nem tanto.
Conta-se ali a existência de Vicente Garrido (Lázaro Ramos), um homem que vive de criar passados falsos para as pessoas, com direito a álbuns de fotos, home movies, convites de casamento, vídeos de lua de mel etc. Cada freguês o contrata tendo em vista a construção de uma determinada biografia, com os objetivos mais diversos.
Até que um dia Vicente é procurado por uma mulher linda e misteriosa (Alinne Moraes), que não lhe conta nada sobre seu passado verdadeiro e lhe dá carta branca para inventar para ela uma história pregressa. A única condição é que, nessa história, ela tenha cometido um crime.
Para resumir o que se segue daí, basta dizer que Vicente batiza a moça de Clara e cria-lhe uma biografia rocambolesca que envolve os desaparecidos da ditadura militar argentina. E que ele mesmo entra em crise, buscando descobrir quem são seus pais biológicos e como foi parar com o amável casal branco de classe média que o adotou.
Trajetórias cruzadas
Essas duas trajetórias cruzadas – a de Vicente e a de Clara – formam um entrecho bastante interessante, que mantém viva até o final a curiosidade do espectador, e que joga com a ideia sempre rica de que toda biografia, no fundo, é uma ficção. Mas, de algum modo, o filme parece não decolar, não levar até o fim as possibilidades de suas linhas de fuga, parar no meio do caminho.
Lázaro Ramos contracena com Alinne Moraes em O vendedor de passados
O que falta, a meu ver, é um empenho mais concentrado de construção da imagem e do ritmo, no rigor e no vigor da encenação. O filme cresce nos momentos em que o protagonista se entrega à manipulação de seus materiais (fotos, vídeos documentais, notícias televisivas), talvez porque o diretor Lula Buarque de Hollanda tenha experiência como realizador de documentários. Mas sua estreia no longa de ficção parece carecer do pulso necessário para uma história de mistério, e de paixão para uma história de amor.
O resultado final é um filme morno, agradável, com a competência e o bom gosto que são o padrão das produções da Conspiração Filmes, da qual faz parte.
Entre a arte e o mercado
Aqui cabe um parêntese sobre a produtora. Formada por diretores de talento, a Conspiração parece ter um pé na arte e um olho no mercado – com perdão do ser desajeitado que a imagem sugere. Às vezes, como em Casa de areia, de Andrucha Waddington, a ênfase recai no primeiro termo; em outras, como em Dois filhos de Francisco, de Breno Silveira, acerta em cheio no segundo. De modo geral, porém, prevalecem filmes “estilosos”, mas sem propriamente um estilo, no sentido de marca pessoal, autoral. Um exemplo flagrante disso seria Heleno, de José Henrique Fonseca.
Para o meu gosto particular, as realizações mais interessantes da produtora carioca são os longas de Claudio Torres, na sua linha de comédia fantástica (Redentor, A mulher invisível, O homem do futuro) – entretenimento inteligente, ligeiro, sem o ranço da pretensão à “profundidade”.
Eficácia e dispersão
Voltando a O vendedor de passados: há lá pelas tantas uma cena que, por contraste, ilumina a falta de inspiração do conjunto. O protagonista e sua amada vão para a cama, meio na contraluz da televisão. Justo quando ele deita sobre ela, deixa de cobrir com seu corpo o monitor. Vemos então a imagem congelada de um repórter que parece contemplar espantado a cena de sexo. A própria dificuldade de descrever a passagem em palavras atesta sua eficácia cinematográfica, algo quase ausente das outras sequências.
Outra coisa: há uma certa dispersão narrativa que não contribui em nada para a contundência do filme. A certa altura, por exemplo, Vicente, que pratica escaladas nas horas vagas, é visto subindo um íngreme rochedo à beira-mar (possivelmente o Pão de Açúcar) e é difícil supor que haja outra motivação para a cena que não seja a de mostrar a beleza exuberante do Rio quando visto do alto.
Talvez seja um tanto subjetivo dizer isso, mas o que falta a O vendedor de passados é, numa palavra, alma.
O século de Welles
Alma, personalidade, estilo são coisas que nunca faltaram a Orson Welles, cujo centenário de nascimento está sendo comemorado este mês. Em São Paulo, para marcar a efeméride, o cine Caixa Belas Artes exibe até o próximo dia 27 uma retrospectiva robusta da filmografia do diretor, que inclui não apenas os clássicos incontornáveis como Cidadão Kane e A marca da maldade, mas também obras menos vistas – e igualmente geniais – como Falstaff e O estranho.
De quebra, uma conversa do crítico Inácio Araujo com a última companheira do cineasta, a atriz e diretora Oja Kodar, amanhã (23 de maio) às 18h30. Aqui, a programação completa.