Observações de um outsider

Correspondência

15.09.11

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Caro Sérgio,

Estas são minhas últimas mal traçadas desta nossa correspondência, e o espaço é pequeno para dar conta de tudo o que sua última carta me fez pensar, lembrar, sentir.

Começo lhe dando um pequeno regalo, em singelo agradecimento pelo prazer e pelo aprendizado que a conversa me trouxe. Você gostou do comentário do Rivellino sobre o Ademir da Guia, então veja neste link do Youtube o que Diego Maradona diz do próprio Riva:

Na minha “identidade paralela” de cronista esportivo, sempre me senti um outsider, porque nunca fui propriamente do ramo (nunca atuei como repórter de esportes, a não ser na cobertura de duas Copas do Mundo e uma Olimpíada) e também porque as coisas que me interessam no futebol geralmente não são as que interessam ao pessoal que vive o seu dia a dia.

Por outro lado, muitas das pessoas de outras áreas com que me relaciono – escritores, cineastas, músicos, scholars, outros jornalistas – muitas vezes se espantam quando digo que escrevo também sobre futebol, como se este fosse incompatível com as artes e com o intelecto de um modo geral. Chegam a me olhar com certa condescendência, como quem perdoa um pequeno vício de uma pessoa a quem se preza.

Nos últimos tempos, felizmente, isso tem mudado: hoje, cineastas como Ugo Giorgetti, músicos como Nando Reis, críticos como Luiz Zanin, ensaístas como José Miguel Wisnik, artistas como Nuno Ramos escrevem naturalmente (e com muita verve) sobre futebol sem despertar maiores escândalos. Mesmo assim, o preconceito e a incompreensão ainda são frequentes.

Tudo isso para falar do prazer enorme que sinto quando encontro um interlocutor como você, que percebe e cultiva a dimensão humana, poética, do futebol. A gente não precisa se desculpar um com o outro para dizer que Zidane é um artista, que Garrincha é um poeta, ou que Pelé escreveu com os pés um épico digno de Tolstoi.

Só por isso já teria valido muito esse nosso diálogo epistolar. Houve muito mais, é claro: a literatura, o cinema, o teatro. Ficou faltando o erotismo (lembra que eu propus o tema?), mas este talvez exigisse um livro inteiro.

Em sua última carta, duas coisas me tocaram em especial. Uma foi a menção ao seu amigo Afonsinho, craque homenageado pelo Gilberto Gil na canção “Meio de campo”, grande batalhador pela dignidade do atleta de futebol. Pois bem: Afonsinho passou a adolescência na cidade onde eu nasci, Jaú, e chegou a atuar pelo XV de Novembro local antes de ir brilhar no Rio. Outro craque jauense foi o fabuloso Edu, do Santos de Pelé, driblador infernal, uma espécie de Garrincha da ponta esquerda.

Mas o Afonsinho faz parte da tríade de jogadores-médicos que ajudaram, cada um à sua maneira, a ampliar a consciência dos futebolistas sobre a sociedade e, inversamente, a consciência da sociedade sobre os futebolistas. Os outros dois, claro, são Tostão e Sócrates. (Nos últimos dias, meu coração corintiano está com este último, na UTI do Albert Einstein.)

Outra coisa que me comoveu em sua carta foi a referência à Prosa do observatório, de Julio Cortázar. Se Borges é um autor que a gente admira, Cortázar é um autor que a gente ama como se fosse um amigo, um irmão. E Prosa do observatório é o livro que eu gostaria de ter escrito, pela maneira como entrelaça num tecido único a ficção e o ensaio, o Ocidente e o Oriente, o épico e o lírico, o indivíduo e o cosmo.

Essa sensação de que, por um momento que seja, percebemos o fluxo contínuo do universo, a presença da eternidade no instante… Talvez seja isso o que buscamos na assim chamada arte (incluindo aí o futebol), bem como no amor.

Obrigado por me lembrar que a literatura pode ter essa grandeza, essa insolente pretensão.

E me despeço com a certeza de que a nossa conversa vai continuar por outras vias.

 

Grande abraço,

 

Zé Geraldo

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