Os vivos e os mortos

Literatura

01.11.12

Estar vivo é questão de tempo. A grande complicação é o que fazer para passar esse tempo. Albert Camus, que picou a mula cedo, tinha algumas ideias sobre o assunto – ou sobre como acabar com ele.  Que o suicídio seja a única questão filosófica relevante, vá lá. Mas imaginar um Sísifo feliz é demais, mon cher Albert: só de pensar na pedra-morro-abaixo-e-pedra-morro-acima me pego entrevado por uma aguda dor lombar existencial.

Dia de Finados dá nisso: homenagear os mortos faz pensar nos vivos, em sua transitoriedade fatal. Santo Agostinho, que sabia das coisas e barbarizou antes de se converter, não dava muita bola para a “vida mortal”. O negócio, escreveu ele,  era a “morte vital”, uma espécie de P.S. mais importante que a carta. Mas em matéria de transcendência, ainda fico com Otto Lara Resende (cristão e cético): morreu, babau.

Homenagear nossos mortos numa data determinada me parece uma espécie de Dia dos Namorados do além: lá, como cá, não faz nenhum sentido. Dos meus, lembro sem ritual. E não foi por falta de estímulo.

Fui, quando criança, um assíduo e involuntário frequentador de cemitério. Mais exatamente o de Inhaúma, um dos lugares mais desprovidos de encantos do Rio de Janeiro. É que minha avó superprotetora tratava os mortos como vivos. Visitava-os em seus aniversários, nos dias dos pais e das mães e, é claro, no 2 de novembro. Lavava os túmulos, enfeitava-os com flores.

Daqueles hábitos saudáveis, excelente substância para o futuro sustento de analistas, herdei, na prática, um medo pânico de defunto – que se hoje não é mais medo é evitação. Simplesmente prefiro não olhar. Desenvolvi inclusive sofisticadas técnicas de entrar em um velório, circular, cumprimentar quem tenho que cumprimentar e não dar nem uma espiadinha no protagonista. Coisa de profissional.

Morto bom, para mim, é morto literário. Sou adepto das peregrinações inúteis a casas e túmulos dos escritores que admiro. Adoraria que o São João Batista fosse seguro para que pudesse de vez em quando dar um alô ao Nelson Rodrigues, eternizado em sua máquina de escrever, ou a Carlos Drummond de Andrade. Menos perigoso e mais fresco, o Cemitière de Montparnasse é a Disneyworld dos fetichistas literários. Lá chega-se o mais perto possível do que sobrou de Marguerite Duras, Sartre & Simone (que depois de tanto discutirem a relação terminaram no mesmo buraco), Serge Gainsbourg e Man Ray – desse aí vem o melhor epitáfio que conheço: “Despreocupado, mas não indiferente”.  Em muitos túmulos, sabe-se lá porque os visitantes deixam bilhetes de metrô (?!), livros e badulaques, embora já tenha visto cartas destinadas aos ilustres moradores.

Nunca há nada sobre o mármore cinza de Samuel Beckett. Talvez porque ele tenha insistido em lembrar a inutilidade de buscar sentido nessa coisa toda.  Recebeu 27 recusas de editores antes de ser publicado pela primeira vez, morava num apartamento mirrado com vista para um presídio e, depois de viúvo,  internou-se num asilo de velhos em Paris e lá morreu, bebendo malte e vendo futebol na televisão. Quando ganhou o Nobel, reagiu como se tivesse levado zero do Jurado C: “que catástrofe”.

Estar vivo, eu dizia, é questão de tempo. Mas o que fazer com esse tempo é uma outra história. Que dizer, é A história.

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