Juliana Lisboa/8M Brasil

Parem, simplesmente parem

Política

07.03.17

Se é verdade, como dizem os mais pessimistas, que o mundo vive uma onda conservadora inédita e devastadora, também pode ser verdade, como crêem os mais otimistas, que os movimentos de resistência nunca foram tão fortes. Como num cabo de guerra, cada força puxando para um lado, a política cada vez mais se dá em termos de ação e reação, fluxo e refluxo, opressão e oposição. Nesse cenário político intenso, os movimentos de mulheres ocidentais – puxadas pela força da manifestação das mulheres norte-americanas contra a vitória de D. Trump – estarão nas ruas neste 8 de Março de 2017 com uma reivindicação central: parem, simplesmente parem. De nos discriminar, violentar, abusar, diminuir, matar, espancar, explorar, segregar. É com essa ideia de parada que as chicanas criaram o Paro de Mujeres; as brasileiras, uma greve geral; e as norte-americanas lançaram um manifesto cujo mote são os ataques da política econômica neoliberal a direitos conquistados.

O contexto político-econômico, em que pesem todas as imensas diferenças a separar o Brasil dos EUA, permitiu aproximações. A pauta brasileira e latino-americana está voltada principalmente para a eterna bandeira contra a violência – o fim da cultura do estupro e dos crescentes casos de feminicídio –, e impulsionada pela oposição às propostas de redução ou eliminação de direitos apresentadas pelo atual governo, como o aumento do tempo de serviço previsto na reforma da previdência. São pautas capazes de mobilizar mulheres brasileiras em inúmeras cidades – lista completa e atualizada aqui – e, principalmente, revitalizar os diferentes feminismos. A convocação ganhou dimensão nacional e internacional e atraiu grupos feministas de países como Chile,  Equador, Inglaterra, França, Alemanha, Guatemala, Honduras, Islândia, Itália, México, Nicarágua, Peru, Polônia, Rússia, Turquia e Uruguai.

Repito aqui a estrutura inicial: se é verdade, como dizem as mais aguerridas, que os feminismos se revitalizaram nos últimos anos, é também verdade que no momento imediatamente anterior à chamada quarta onda, os movimentos feministas ocidentais estavam capturados pela institucionalização ou, dito de uma forma pior, pela adesão aos governos. É esse, por exemplo, o diagnóstico da filósofa Judith Butler nas primeiras linhas de “O clamor de Antígona”, quando diz que começou a refletir sobre a personagem da tragédia de Sófocles enquanto se perguntava “o que havia acontecido com aqueles esforços feministas para confrontar e desfiar o Estado”. Butler está se referindo a um momento em que os feminismos buscaram “apoio e autoridade do Estado” para alcançar seus objetivos políticos.

O retorno às ruas – principalmente a partir das jovens, das negras, das trans, das queers – , é não apenas a volta à oposição, mas principalmente a retomada da irreverência e do deboche como potente arma política. Gostaria de insistir nesse ponto porque é nele que me parece estar o maior valor das ruas, não apenas desde 2011, quando a Marcha das Vadias começou a se espalhar, de Toronto para a grandes cidades ocidentais; mas também desde 2013, quando o Movimento Passe Livre liderou as manifestações de rua em São Paulo, também multiplicadas no restante das grandes capitais brasileiras. As ruas são o oxigênio de sobrevivência de atuações políticas que unem duas bandeiras, outro modo de dizer que as pautas feministas não se esgotaram nem se esgotarão enquanto o sistema econômico, político e social estiver voltado para o privilégio de uns poucos (e agora, eventualmente, de umas poucas).

O que ainda nos leva para as ruas do mundo ocidental é o que considero a melhor palavra de ordem para o 8 de março e para todos os dias de luta: a revolução será feminista ou não será. Por “revolução” estou me referindo à superação de desigualdades econômicas, sociais, educacionais, raciais que, na verdade, seguindo o argumento da feminista Nancy Fraser – uma das lideranças nos EUA – se aprofundaram, apesar de todas as transformações culturais que os movimentos de mulheres realizaram ao longo do século XX. É seu argumento no excelente artigo “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história” , no qual a autora se pergunta se “segunda onda do feminismo forneceu inconscientemente um ingrediente fundamental do que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005) chamam de o novo espírito do capitalismo”’.

Fraser está se referindo ao fato de que a mão de obra feminina atendeu perfeitamente ao anseios de flexibilização e precarização da mão de obra que moveram as empresas principalmente a partir dos anos 1960 – coincidente com o início da segunda onda feminista – , mas sobretudo período no qual a lógica do capital teve a astúcia, para usar o termo de Fraser, de se adaptar diante das reivindicações libertárias que partiam das mulheres, mas não apenas. Em ensaio na revista serrote, também discuto essa passagem a ambientes de trabalho flexíveis, conectados em rede, nos quais a hierarquia empresarial foi substituída pela terceirização e a precarização da mão de obra.

Num diagnóstico preciso, Fraser diz que “o que foi verdadeiramente novo sobre a segunda onda foi o modo pelo qual ela entrelaçou, em uma crítica ao capitalismo androcêntrico organizado pelo Estado, três dimensões analiticamente distintas de injustiça de gênero: econômica, cultural e política”. De volta às ruas, a quarta onda feminista tenta, com sua plasticidade e irreverência, resgatar essa crítica ao capitalismo e às injustiças de gênero nele contidas e acentuadas por um recrudescimento das políticas neoliberais de corte de direitos.

 

#nemumdireitoamenos

, , , , , , , , , , , , , , , , ,